Para a nova economia avançar, será preciso incorporar o capital natural na estratégia das empresas
Por Amália Safatle
Na Economia, o capital pode ser entendido como um conjunto de bens que geram produção, rendimentos e riquezas. Ao transpor essa linguagem para a natureza, chegamos à expressão “capital natural”, usada para representar o estoque de recursos renováveis e não renováveis que se combinam e geram um fluxo de benefícios para as pessoas – como ar limpo, água fresca, abrigo, alimentos, regulação do clima, remédios, recreação e assim por diante.
Para Herman Daly e Joshua Farley, autores de obras referenciais como Ecological Economics: principle and applications, capital natural significa o “estoque ou reserva provida pela natureza (biótica ou abiótica) que produz um valioso fluxo futuro de recursos ou serviços naturais”. Enquanto os ecossistemas são um exemplo de “estoque”, os serviços ecossistêmicos prestados pela natureza podem ser considerados como “fluxo” (saiba mais sobre Serviços Ecossistêmicos nesta edição).
Conservar a natureza, por princípio, deveria ser uma prática incondicional, da qual não se espera nada em troca. Bastaria compreender que toda forma e estrutura de sustentação da vida são dignas de amor, respeito e proteção simplesmente pelo fato de existirem. Razões éticas e morais também seriam suficientes para justificar políticas de conservação.
Mas, nos sistemas econômicos que veem a natureza como um conjunto de recursos a ser explorado ou sumidouro de recursos descartados em benefício da espécie humana, partindo de uma visão antropocêntrica, torna-se crucial reconhecê-la como um capital dotado de imenso valor que sustenta todos os demais – humano, social, financeiro, de infraestrutura etc. Esse reconhecimento passa a ser um forte argumento para que a natureza não seja espoliada, mas vista como oportunidade de gerar e distribuir ganhos econômicos e sociais.
Atualmente uma importante fonte do conhecimento sobre capital natural são os trabalhos de sistematização de informação feitos pela iniciativa The Economics of Ecosystems and Biodiversity (TEEB), ou Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade, liderada pelo economista Pavan Sukhdev e lançada em 2007 pela Alemanha e Comissão Europeia. O intuito é demonstrar a importância econômica da perda de biodiversidade e da degradação ecossistêmica, considerando os efeitos prejudiciais sobre o bem-estar humano.
Quando trabalhava no setor financeiro nos anos 1990, Sukhdev ficou inconformado com a desconexão entre o notável desempenho econômico dos chamados Tigres Asiáticos, que levou à formação de fortunas pessoais, e a destruição a olhos vistos das bases naturais da economia (no final da década de 1990, a Ásia entraria em crise).
“O Rio Amarelo ficou seco durante nove meses em 1997 e, em 1998, houve a enchente do Yang-tsé. Densas nuvens de fumaça vindas da queima de turfeiras na Sumatra prejudicaram a qualidade do ar em Cingapura, onde eu vivia. Mas as manchetes em todo mundo relatavam a crise financeira da Ásia, o colapso do mercado mobiliário da Tailândia, as manifestações na Indonésia, a desvalorização da moeda local na Malásia e sua substituição pelos controles de câmbio”, escreveu Sukhdev no primeiro Relatório TEEB.
E, então, questionou: “Por qual motivo a riqueza pessoal é perseguida e sua perda é objeto de interesse, mas não a riqueza pública?”.
Segundo ele, percebia-se que, em algumas vezes, bastava o reconhecimento do valor intrínseco, espiritual ou social dos ecossistemas e da biodiversidade para estimular a formulação de políticas públicas. Mas, em outras situações, os formuladores de políticas precisavam antes demonstrar o valor econômico de um serviço para justificar práticas de conservação.
Um exemplo clássico disso – ilustrado no capítulo 4 do Relatório TEEB – foi a demonstração, por meio de números, de que conservar os mangues próximos à cidade de Kampala, capital de Uganda, seria mais vantajoso que usar as áreas para cultivo agrícola, pois os mangues agem como um tratamento natural do esgoto, economizando recursos em saneamento.
Falando a mesma língua
Seria mais eficaz, portanto, lançar mão das mesmas expressões usadas do modelo econômico e político dominante no mundo. Em outras palavras, falar a mesma língua do business as usual para apresentar novos paradigmas.
Ainda hoje, o uso de expressões originárias da Economia, tais como capital natural, estoque, fluxo e recursos naturais, é criticado por algumas correntes ambientalistas e socioambientalistas. No entanto, valorar o capital natural é diferente de atribuir um caráter comercial. Não significa que a natureza esteja à venda, e sim que possui um valor tangível e, muitas vezes, intangível – que não pode ser monetizado, como o afetivo, o espiritual, o cultural (mais sobre serviços ecossistêmicos culturais aqui)
O problema de não reconhecer valores tangíveis e intangíveis é passar justamente um sinal contrário aos mais desavisados: de que os bens naturais são gratuitos e estão totalmente disponíveis para serem explorados por todos a qualquer momento, ampliando o risco de levá-los à exaustão.
Fábio Scarano, coordenador do Painel Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ambientais (IPBES), alerta para o viés antropocêntrico que a expressão capital natural sugere e afirma que o desafio é saber manter bem separadas as noções de preço e de valor. “A natureza não preço”, pontua. A seu ver, o risco de uma confusão entre esses conceitos cresce quando o capital natural é incorporado na gestão empresarial.
Esse assunto é tratado no Relatório TEEB, segundo o qual estabelecer um valor para os serviços ecossistêmicos não significa que devam ser convertidos em valores mobiliários, passíveis de troca no mercado aberto: “O TEEB não propõe uma confiança cega na capacidade dos mercados de otimizar o bem-estar social, privatizando os bens ecológicos e deixando que os mercados estabeleçam seus preços. O que o TEEB oferece são as ferramentas para a adoção da boa gestão por ser uma boa prática econômica”.
Em busca da melhor gestão
Há motivos sobrando para se perseguir a melhor gestão empresarial, econômica e dos recursos naturais. Como mostra seguidamente o Dia de Sobrecarga da Terra, divulgado pelo WWF, a cada ano esgotamos os recursos mais rapidamente do que os sistemas naturais são capazes de regenerar no período de 12 meses, o que nos mantém em um explosivo cheque especial – para usar também uma expressão financeira.
Enquanto isso, o capital financeiro cresce, em boa parte, às custas do uso, da exploração e da degradação dos capitais natural e humano, segundo a Natural Capital Coalition. Essa coalizão, que reúne organizações e especialistas sobre o tema em todo o mundo, produziu um protocolo, usado pelas empresas como guia de implementação de práticas ligadas ao capital natural.
A Natural Capital Coalition lembra que toda empresa impacta e depende do capital natural em algum grau e, por conta disso, sofrerá riscos, mas também poderá se beneficiar de oportunidades. “Todos os impactos e dependências afetam não apenas os negócios, mas também a sociedade”, afirma a coalizão.
Com o intuito de investigar a importância que as empresas, no Brasil, dão ao capital natural e de que forma lidam com esse assunto em sua gestão, foi lançada em maio passado a chamada de casos Gestão Empresarial de Capital Natural, cujos resultados são objeto de reportagens ao longo desta edição.
Trata-se de uma iniciativa, inédita no Brasil, que nasceu da parceria entre o Ministério do Meio Ambiente (MMA), a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável (GIZ), no âmbito do Projeto TEEB Regional-Local, com o Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV Eaesp (FGVces). Contou também com o apoio da Fundação Grupo Boticário (entenda o processo de seleção aqui).
O ideal é que a preocupação com o capital natural seja internalizada na estratégia e na gestão cotidiana da empresa. Ou seja, não basta ter um projeto isolado que busca a conservação do capital natural enquanto os negócios principais são movidos pela “velha economia”.
Esse é um risco alertado por Carlos Eduardo Frickmann Young, professor associado do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento. “No setor de agro, por exemplo, existem iniciativas muito bacaninhas de conservação, mas o grosso do investimento vai no sentido da ‘competitividade espúria’, como dizia o Fernando Fajnzylber”, afirma.
A mensagem de Young é para que as iniciativas empresariais de conservação do capital natural não sejam pontuais, e sim sistêmicas – especialmente considerando o contexto de “reprimarização” da economia brasileira como um todo. Essa tendência busca a competitividade a baixos custos, calcada fortemente em commodities, como grãos in natura e minério bruto, em geral com baixa criação de emprego e alta geração de externalidades negativas.
Reflexos negativos ou positivos de uma atividade que são sentidos por aqueles que pouco ou nada contribuíram para gerá-los. No caso de externalidades negativas, os prejuízos impostos à sociedade não são arcados por aqueles que os provocam, e sim pagos por todos.
Segundo ele, o fenômeno da reprimarização intensificou-se nas últimas duas décadas (ver gráfico abaixo) e é protagonizado por setores que muitas vezes tentam se libertar do que veem como amarras do ponto de vista ambiental, como controle de agrotóxicos, condicionantes de licenciamento e combate ao desmatamento.
Sem que as empresas incorporem o capital natural em suas estratégias de gestão, será muito difícil o País avançar na agenda do desenvolvimento sustentável. Reconhecer as que inserem o capital natural em sua estratégia de negócios é a grande motivação desta edição.
Evolução do PIB Trimestral por atividade, 1996-2018 (média de 1996 = 100):
Fonte: IBGE, Contas Trimestrais