Por Camila Cordeiro e Isabella Pileggi
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Saiba o que os pequenos produtores estão fazendo acessar cadeias de valor de grandes empresas e conheça certificações alternativas, como o Sistema Participativo de Garantia
Localizada atrás de uma porteira branca, em uma estreita estrada de terra que cruza a BR 462, encontra-se a fazenda de Arinaldo Ribeiro de Oliveira, mais conhecido como Seu Arinaldo. A propriedade situa-se no chamado Cerrado mineiro, região conhecida como uma das maiores produtoras de café no Brasil e que abrange um total de 210 mil hectares de área de produção. O fazendeiro, natural do município de Patrocínio, Minas Gerais, vive em sua pequena fazenda de 15 hectares, sendo 11 exclusivos para a plantação de café. Há mais de 40 anos, ele sustenta sua família com o dinheiro que obtém da venda de sua produção, sendo um de seus principais clientes a Nespresso, do Grupo Nestlé.
A fazenda do Seu Arinaldo ainda não é certificada, mas para que estivesse apta a produzir café para a Nespresso, teve de começar a seguir o “Programa de Qualidade Sustentável AAA” – mais conhecido como Triple A, uma série de critérios básicos de produção exigidos pela própria Nespresso, e que atestam a sustentabilidade tanto ambiental quanto social da propriedade. No momento, ele está fazendo todo possível para adequar sua fazenda e torná-la apta a receber o selo de certificação da Rainforest Alliance, um tipo de certificação socioambiental internacional que tem como objetivo garantir a diversidade, qualidade do produto e meios de vida sustentáveis da propriedade. Mas por que a obtenção da certificação é tão importante para o Seu Arinaldo?
A certificação socioambiental é um instrumento criado a fim de testar e garantir boas práticas dentro de empreendimentos. A demanda por esse tipo de instrumento veio diretamente do consumidor, em busca da certeza de que, ao comprar determinado produto, não estaria incentivando indiretamente danos ambientais ou sociais. Em outras palavras, o consumidor queria a garantia de que não estaria poluindo rios e solos ao comprar um produto de limpeza vindo de uma indústria que não descarta corretamente o esgoto, por exemplo, ou de que, ao renovar seu guarda-roupa, não estaria comprando roupas de uma fábrica que incentiva o trabalho infantil ou análogo à escravidão. Foi a partir dessa preocupação que surgiram os selos de certificação.
Grandes empresas como a Nespresso e a Natura, preocupadas em manter seus valores e em não fazer parte de uma cadeia de produção que possui fornecedores com práticas duvidosas, resolveram adotar critérios mais rígidos para com seus fornecedores, criando os próprios padrões de produção (caso do Triple A da Nespresso) ou só comprando produtos de empreendimentos que possuem certificações socioambientais. Assim, mesmo que Seu Arinaldo consiga fornecer café para a Nespresso, a obtenção do selo de certificação Rainforest abriria ainda mais portas para o fazendeiro, garantindo o reconhecimento internacional da qualidade de seu produto e, principalmente, a sustentabilidade socioambiental de sua propriedade.
No caso da cadeia de produção do café, as certificações mais reconhecidas no Brasil são a UTZ e a Rainforest Alliance, segundo Guilherme Amado, gerente de projeto do café verde na Nespresso Brasil. Esses selos surgiram no País em 2002, época em que as fazendas começaram a se adequar às diversas demandas que surgiam entre os consumidores e têm se tornando cada vez mais requisitadas (leia mais na reportagem Demanda e acesse vídeo sobre certificação nos Drops).
Para manter o controle e manutenção das certificações, as propriedades passam por processos de auditoria. Segundo Amado, existem dois tipos de auditoria: as individuais, feitas em uma só propriedade, e as que são realizadas em grupo, entre várias propriedades.
No que se refere às individuais, são realizadas duas auditorias por ano: uma interna, aplicada por um agrônomo de uma cooperativa ou exportadora (comercializadora) do produto em questão; e outra externa, que é realizada pelo próprio Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), representante no Brasil da Rainforest Alliance e dos principais selos de certificação. Ambos os processos têm como objetivo verificar se a fazenda em questão continua seguindo os critérios estabelecidos pelo selo na qual ela é certificada.
Já as auditorias coletivas passam por um processo que, apesar de semelhante em alguns aspectos, possui a diferença de que são realizadas a partir de uma amostra, além de haver uma corresponsabilidade entre os membros pertencentes àquele conjunto: uma ou mais fazendas que fazem parte do grupo são escolhidas de forma aleatória para que a auditoria presencial seja realizada. Caso haja alguma inconformidade em alguma das fazendas-membro, todas as demais também saem prejudicadas. Mas também existem vantagens, como a redução do preço do processo de auditoria e a existência de um conhecimento colaborativo criado pelo grupo.
Para que as auditorias sejam realizadas, é preciso que as propriedades sigam corretamente os processos de rastreabilidade que, por definição, é a manutenção de registros de um processo, seja ele físico, seja financeiro. Entretanto, independentemente do tipo de rastreabilidade a que se está referindo, faz-se necessária a anotação de todos os processos e circunstâncias de produção.
Na fazenda de Seu Arinaldo, por exemplo, existe uma determinada quantidade de talhões de café. Antes da colheita, é necessário anotar tudo o que acontece em cada talhão, desde os níveis de umidade da terra até a presença de defensivos químicos. Assim que esse produto vai para a secagem, ele é novamente controlado, agora com medidas de peso e tamanho. A rastreabilidade da cadeia de custódia continua ao longo de todo o processo, acompanhando todos os passos e mudanças que eventualmente ocorram com o produto em questão. Todas essas informações são anotadas, compiladas e compartilhadas com o auditor anualmente, permitindo-o avaliar o desempenho de suas sacas.
Uma das grandes questões colocadas é justamente que o processo de rastreabilidade é feito manualmente, caracterizando-se como uma etapa demorada e pouco eficiente. César Júnior, funcionário da exportadora e comercializadora de café Stockler, afirma que o processo poderia ser muito mais fácil, caso fosse integrado a um aplicativo, e talvez seja este o maior gargalo do processo produtivo certificado.
Um grande desafio é a obtenção de certificação para pequenos produtores como Seu Arinaldo, mesmo quando a auditoria é feita em grupo. Por conta do rigor dos critérios, torna-se bastante custoso manter os padrões exigidos e, ao mesmo tempo, arcar com o valor da certificação por auditoria. Dado esse cenário, produtores passam a procurar novos meios para obter o reconhecimento de origem dos seus produtos.
A produção de produtos agroecológicos e orgânicos exige uma série de prerrogativas, que observam desde os produtos utilizados no solo, como fertilizantes e defensivos naturais, a até uma relação sustentável não apenas com o meio ambiente, mas sobretudo com a sociedade. A necessidade de garantir que os produtos estejam de acordo com os padrões exigidos impulsiona a criação de diferentes formas de certificação desses processos.
Para os produtores, a certificação é vista como forma de agregar valor ao produto, tornando-o mais atrativo no mercado e proporcionando uma maior rentabilidade na venda. A partir dos selos, os produtos passam a ter mais credibilidade nas prateleiras, permitindo uma maior comercialização.
“Com a certificação poderíamos vender nossos produtos em Manaus e aumentar a produção, trazendo mais gente para trabalhar com a gente”, aponta Maria de Jesus Pascoal, produtora de alimentos orgânicos de Manaus.
Maria de Jesus é uma agricultora de alimentos orgânicos que ainda não possui certificado para seus produtos. Segundo ela, o processo de certificação é difícil, uma vez que há uma série de exigências às quais os pequenos produtores devem se adequar. Segundo a Lei nº 10.831, de 2003, mais conhecida como “Lei dos Orgânicos”, para que um produto possa ser comercializado como orgânico é necessário que tenha um certificado concedido por uma instituição reconhecida legalmente.
Entretanto, em casos de comercialização direta entre produtores familiares e consumidores, é possível que a certificação seja facultativa. Para que isso seja viável, é necessário que esses produtores estejam “inseridos em processos próprios de organização e controle social, previamente cadastrados junto ao órgão fiscalizador”, segundo o inciso primeiro do artigo terceiro.
Isso possibilitou a existência de outra forma de certificação, o Sistema Participativo de Garantia (SPG). Tal sistema é formado por Organizações de Controle Social (OCS), sendo que cada uma possui seus grupos de base, estes por sua vez são formados por pequenos grupos de produtores de agricultura familiar que exercerão o monitoramento conjunto dos processos de produção. Cada grupo assume uma responsabilidade coletiva, na qual todos os membros são responsáveis por garantir o cumprimento das etapas de produção conforme as normas preestabelecidas por lei. Esse sistema consiste na concessão de um certificado coletivo para os membros do grupo. Mais que isso, trata-se de um instrumento de empoderamento dos pequenos produtores.
Nesse sistema de certificação, há um mecanismo de visita de pares, em que os próprios membros acompanhados de dois ou mais técnicos, realizam visitas anuais nas propriedades dos integrantes do grupo. Essas visitas funcionam como uma verificação das propriedades. Além disso, todos os produtores devem apresentar um Plano de Manejo do Orgânico, especificando quais serão as áreas produtivas, quais serão as culturas desenvolvidas, entre outras especificidades.
O Sistema Participativo de Garantia é auditado a partir da amostragem pelo Ministério da Agricultura, Agropecuária e Abastecimento (Mapa), com o objetivo de verificar se o sistema está seguindo a legislação. O SPG segue a mesma lógica das auditorias coletivas, se um dos membros da OCS não estiver em conformidade com os padrões, todo o grupo perde o certificado. Como mencionado, são observadas não apenas questões ambientais e do uso de agroquímicos, como também questões sociais nos processos produtivos.
José Rodrigues Pinto, pequeno produtor membro do sistema de OCS Associação de Produtores Orgânicos do Amazonas (Apoam) e membro da SPG da Associação Maniva de Certificação Participativa, conta quais são os itens observados na visita de pares. Ele destaca alguns: se há lixo espalhado na propriedade com risco de contaminar a produção; se há cães, principalmente nas áreas de plantio de folhagens; se é feita a higienização dessa produção para que ela possa ser comercializada; se a mão de obra é terceirizada ou familiar; e se há crianças deixando de ir para a escola para ajudar os pais.
Esse sistema alternativo de certificação enfatiza as relações de confiança entre os membros das OCS. Por ser um sistema de corresponsabilidade, o SPG promove uma lógica inversa à das certificadoras, pois não há uma relação de hierarquia, mas de cooperação entre os membros.
Segundo Mariana Gama Semeghini, da Rede Maniva, os grandes méritos do SPG são a participação e o processo de formação, integração e empoderamento de todos os membros (agricultores, técnicos, estudantes, gestores, consumidores), especialmente dos agricultores. Além disso, destaca como um dos principais desafios do sistema o reconhecimento internacional, pois o SPG, que surgiu no Brasil, embora permita o uso do selo de produto orgânico, não é reconhecido em outros países.