Por Marcela Garcia Corrêa, Evaristo Mesquita e Rhuan Pereira

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É preciso considerar as questões culturais envolvidas na relação dos agricultores familiares com as inovações tecnológicas e saber como apropriar-se delas

A transição para formas de produção mais sustentáveis, em especial no caso da agricultura familiar orgânica, depende de políticas públicas, infraestrutura, apoio técnico e financiamento para acontecer. Os espaços para esse tipo de produção estão sendo construídos para responder à crescente preocupação com novas formas de produzir e consumir, como mostram estas reportagens: Oferta I e Demanda. Nesse sentido, a transição requer também uma mudança cultural e adaptação a novos paradigmas.

O uso da tecnologia e suas ferramentas pode facilitar o acesso de pequenos produtores a certificações socioambientais, no entanto, é preciso considerar as questões culturais envolvidas na relação dos agricultores com as tecnologias – ou quaisquer ferramentas que se apresentem para otimizar a produção orgânica – e sua forma de apropriar-se delas.

Novas tecnologias, de uma forma geral, buscam a compressão do tempo e do espaço, agilizando processos e descomplicando a comunicação e interação entre indivíduos distantes. O surgimento de tecnologias como o e-mail trouxe benefícios para a comunicação entre pessoas, se comparada a uma ferramenta mais obsoleta, como a carta. Essa transição não representa somente a adoção de um suporte mais eficiente, mas também a reconfiguração das possibilidades de interação entre os indivíduos no tempo e espaço dessas trocas.

Mas, e quando se espera usar tecnologia para otimizar um espaço que possui seu tempo próprio? E quando a relação das pessoas com esse espaço vai além do que é produzido e toca em sentidos mais profundos como propósito e fé, costumes e crenças?

Tornar os pequenos agricultores brasileiros agentes ativos na complexa cadeia de produção e consumo de orgânicos e facilitar seu acesso a certificações socioambientais através de novas tecnologias, como o blockchain, introduz a questão de como se relacionar com os significados que a agricultura e a produção orgânica têm para os produtores. E também levanta a questão sobre como seus saberes tradicionais são contemplados e potencializados pelas tecnologias, sem serem substituídos por uma visão que se ocupe apenas da produção.

Uma questão de diálogo

Quando se fala em pequenos produtores de orgânicos no Brasil, é importante lembrar as diferenças entre esse tipo de ator e os grandes agricultores que produzem na lógica convencional do agronegócio, com muitos recursos e tecnologias sofisticadas.

Para o pequeno produtor, o contato com a terra e com a produção é mais próximo, mais manual. Além disso, o papel da agricultura é bastante central para essas famílias, é algo que compõe os seus e sua vida como um todo.

Falar da aplicabilidade de blockchain na cadeia de produção de orgânicos no Brasil é, inevitavelmente, abordar sua aplicabilidade em uma forma de vida e existência, e não apenas de trabalho. É a partir disso que são colocadas questões que passam pelo acesso, apropriação e o uso da tecnologia, a aceitação por parte dos agricultores e pelas possibilidades de adequar o uso da tecnologia a seu modo de vida e visão de mundo.

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Uma questão de tempo

A velocidade que a tecnologia pode conferir aos mais diferentes processos e a dinâmica da produção convencional, que precisa ser rápida para dar conta de um padrão de consumo intenso, não dialoga com o tempo da produção orgânica, que é o tempo da natureza.

“Nós trabalhamos isso [sustentabilidade] desde o ano de 2000, porque se trata da importância de você equilibrar o ecossistema. Se você tem na roça o rato, a cobra come o rato. Quando a formiga começa a voar, os passarinhos comem as formigas. Então você tem que trabalhar a fauna e a flora ao mesmo tempo. É isso que torna o ambiente sustentável. É você viver bem em um ambiente bom, você viver bem com a natureza”, diz Vilson Câmara, agricultor familiar orgânico do Rede Povos da Mata de Ilhéus, na Bahia.

A agricultura familiar orgânica compreende o solo como um organismo vivo que deve ser respeitado. Não são os picos de demanda que ditam o ritmo da produção, mas as possibilidades de plantio que cada época do ano oferece. Enquanto a lógica do agronegócio segue um calendário de mercado – um ano dividido em 365 dias e uma população que demanda todo tipo de alimento durante todo o ano –, o produtor orgânico orienta-se pelas estações do ano.

Enquanto o convencional precisa lançar mão de agrotóxicos e sistemas artificiais de produção para adequar o tempo da natureza ao tempo da demanda, o orgânico precisa conhecer as épocas de chuva e secas e saber o que é possível produzir em cada período. É preciso preparar a compostagem, adubar a terra, plantar. E, segundo o agricultor José Rodrigues Pinto, membro da Associação dos Produtores Orgânicos do Amazonas (Apoam), ter muita fé de que cada semente vai se transformar em uma planta que poderá ser o alimento da família ou fonte de renda por meio do comércio em feiras de orgânicos na cidade.

Também como outro exemplo dessa conexão com a natureza, em áreas de agricultura familiar visitadas pelo grupo em Belém, como o grupo de mulheres Rede de Economia Solidária e Feminista (Resf), a colheita de diversas plantas – que são vendidas diretamente para a Natura – tem um significado maior. É um ritual, que demanda primeiro o agradecimento denominado Priprioca. Essa dinâmica com o tempo coloca a natureza não como um recurso a ser explorado, mas um agente primordial que possibilita a vida e deve, acima de tudo, ser zelado e valorizado.

Uma questão de propósito

Propósito é outro conceito importante para compreender a questão da produção orgânica e responsável. “Produzir orgânico não é vestir uma camisa. Se você muda de time, troca a camisa. Aqui a gente entra com o coração”, afirma Câmara.

Muitas vezes, a motivação para começar a produzir orgânicos é a possibilidade de maior valorização do trabalho, pois o produto orgânico oferece, em média, um potencial de ganho cerca de 30% maior para o produtor. Mas a descoberta da importância que esse tipo de produção tem para o meio ambiente e para a saúde da população é o que mantém as famílias de agricultores produzindo alimentos orgânicos.

O sentimento de propósito, tão valioso para os produtores, torna-se parte de uma cosmovisão, ou seja, uma visão de mundo e uma forma de conceber uma realidade. A cosmovisão refere-se a um conjunto de valores, crenças, concepções e, principalmente, sentimentos que emergem em relação a forma como o ser enxerga o mundo antes de sua existência.

Câmara, que chegou a perder o selo de certificação da sua propriedade por um tempo, decidiu continuar produzindo orgânicos. “Vamos fazer a coisa certa. (…) Vamos trabalhar com agricultura limpa, vendendo saúde aos nossos clientes. E comendo saúde, na verdade, porque você se alimenta só [do que vem] da propriedade, então sabe que é uma alimentação limpa, e você vai viver melhor”, declara.

Reconhecer a importância do trabalho que desenvolvem e partilhar esse orgulho com os familiares é um fator importante para os agricultores orgânicos – em especial quando se pensa nos jovens que têm enxergado na produção orgânica uma possibilidade de valorização do trabalho e de melhores condições de vida.

Portanto, não basta apenas fornecer infraestrutura necessária (como acesso a internet, celulares e computadores), treinamento, capacitação e aplicar o blockchain esperando a solução da cadeia de orgânicos no Brasil. É preciso entender que projetos desse cunho vão sempre mexer intensamente na forma como os pequenos produtores vivem e assim, com isso em mente, surge a necessidade de antes entender a realidade em questão e respeitá-la. Assim como o blockchain opera de acordo com com as chamadas regras de consenso, algumas premissas também devem ser preestabelecidas quando aplicado à produção orgânica: o total e íntegro respeito às crenças, valores, costumes e formas de vida dos agricultores.

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