Por Marcela Garcia Corrêa, Evaristo Mesquita e Rhuan Pereira
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Os selos socioambientais são passaporte para um importante mercado. Conheça os obstáculos que os agricultores familiares precisam enfrentar para obtê-los
A produção orgânica, resposta importante para atender a crescente demanda por produtos mais sustentáveis, representa uma oportunidade de mercado para os pequenos agricultores e produtores familiares. Mas a transição do modelo convencional para o orgânico não é nada fácil. Além dos desafios inerentes à produção familiar, os agricultores ainda enfrentam dilemas para a obtenção de certificações socioambientais, que serviriam como um passaporte para acessar novos consumidores.
A valorização dos produtos orgânicos e a possibilidade de participar de feiras livres e iniciativas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) são grandes atrativos para os agricultores familiares. No entanto, fazer a transição para formas mais sustentáveis de produção e consumo requer a superação dos padrões econômicos, sociais e culturais estabelecidos por modelos tradicionais de produção, além de exigir atenção para aspectos que vão do financiamento ao apoio técnico para viabilizar a produção.
Nas regiões Nordeste e Norte, o contexto é ainda mais alarmante: 72% dos produtores não geram lucro suficiente para elevar a mão de obra familiar acima da linha de pobreza, segundo Censo de 2010 do IBGE, enquanto 25% da população rural vive em situação de pobreza, com renda inferior a R$ 70 mensais per capita. No Nordeste, 65,5% das famílias agrícolas recebem Bolsa Família, de acordo com os dados do Cadastro Único.
Não bastassem essas dificuldades, o processo de transição da produção convencional para a orgânica é lento e custoso. Pode levar até três anos para ser concluído e muitas vezes necessita de acesso a crédito. Segundo Roseilda Lima Duarte (Rose), agricultora familiar de orgânicos em Parelheiros (SP), os desafios continuam para quem já fez a transição: por ser livre de agrotóxicos, esse tipo de estabelecimento está mais sujeito a perdas, que são estimadas em 30% da produção. Além disso, há dificuldade no acesso a insumos orgânicos, como esterco para adubar a terra, e barreiras logísticas para comercializar os alimentos produzidos.
Para serem comercializados, os produtos orgânicos precisam de um selo de garantia. Há órgãos certificadores que realizam auditorias para atestar se a produção de um estabelecimento está em conformidade com critérios internacionais para a agricultura orgânica – a atuação desses órgãos é especialmente importante para o produtor que tem interesse em exportar alimentos. A supervisão do processo de auditoria por entidades acreditadoras garante a confiabilidade dos selos nessa modalidade de certificação.
Por outro lado, o custo pode colocar entraves para o pequeno produtor, como relata Vilson Câmara, produtor orgânico da Rede Povos da Mata, em Ilhéus (BA): “Nós, pequenos produtores, não tínhamos condições de pagar porque uma visita na época, em 2004, custava R$ 8 mil”. Os custos de locomoção e hospedagem do auditor são custeados pelo produtor, e esse investimento pode ser ainda maior se, no processo, forem necessárias mais visitas.
Para os produtores da Associação de Produtores e Produtoras Rurais da Comunidade de Campo Limpo (Aprocamp), em Santo Antônio do Tauá (PA), o custo da certificação levou à perda do selo. A auditoria, antes cobrada por associação, passou a ser cobrada por produtor, o que tornou o processo inviável para muitos dos associados.
Outro ponto de atenção é a proximidade com estabelecimentos que fazem agricultura convencional. O uso de agrotóxicos no entorno faz com que os produtores de orgânicos precisem tomar medidas para evitar a contaminação de suas terras. A contaminação pode se dar pelo solo, pela água e pelo ar, quando é feito o descarte indevido de embalagens, mau uso de herbicidas e inseticidas e por dispersão aérea em propriedades vizinhas.
Além disso, a infraestrutura para a agricultura familiar é muitas vezes deficiente. Uma das dificuldades é a comunicação diante da falta de acesso à internet e telefonia. O transporte da produção muitas vezes é afetado pelas más condições das estradas. “Daqui um ano e meio só vai dar para passar de trator na nossa estrada. Tem uns três anos que está uma buraqueira, leva 1h20 daqui pra cidade. Um carreto que custaria R$ 60 reais, custa R$ 150, R$ 180 por causa das condições da estrada”, comenta Vilson Câmara sobre a dificuldade de acesso.
O planejamento de produção também requer cuidados para o agricultor orgânico. Sem utilizar produtos químicos para garantir a produtividade, o cálculo da estimativa de produção torna-se complexo e dificulta o planejamento. Além disso, o plano de manejo de uma propriedade orgânica é bastante detalhado e requer tempo e dedicação do agricultor para manter a conformidade.
Caminhos possíveis para o selo
Para facilitar o acesso de pequenos produtores ao mercado de orgânicos, uma das alternativas que podem ser exploradas são é o Sistema Participativo de Garantia (SPG). Nessa modalidade de certificação, os agricultores formam grupos para se apoiar mutuamente no processo de certificação e na adequação das propriedades à produção orgânica por meio de mutirões.
Para Câmara, no SPG “um agricultor que fiscaliza o outro, é ele que certifica o outro agricultor. Como ele está presente aqui no dia a dia, sabe o que você tá fazendo”. Além de facilitar o acesso ao selo de garantia, esse modelo também oferece um envolvimento comunitário benéfico para o produtor.
Outra forma de apoiar a agricultura familiar orgânica é por meio da capacitação técnica e do acesso a financiamento. Nesse caso, há espaço para atuação do Estado e do terceiro setor, com iniciativas que contribuam para o desenvolvimento local. Um exemplo da atuação do terceiro setor é o Instituto Tabôa, que trabalha junto a comunidades de Serra Grande, em Ilhéus (BA). A atuação do instituto tem a intenção de fortalecer iniciativas sustentáveis por meio da concessão de crédito, incubação e fortalecimento de negócios.
O Estado também oferece iniciativas, como o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), que tem como objetivo a articulação entre estados e municípios para incentivar, fortalecer e ampliar sistemas de produção de orgânicos. Além disso, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) apoia os pequenos produtores por meio de diferentes modalidades de financiamento, com linhas específicas para apoio à agroecologia e implantação de tecnologia para tornar a produção mais sustentável.
No entanto, existem entraves burocráticos para aquisição da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), o que dificulta o acesso ao crédito. Também há a questão de redução do investimento no setor: o número de contratos e o volume de crédito acessado caíram, passando de 1.988.525 contratos e R$ 19 bilhões em crédito em 2013 para 1.019.716 contratos e R$ 18 bilhões.
O orçamento anual do governo federal de 2019, estabelecido pela Lei Orçamentária Anual, prevê queda de investimentos no que se refere ao fortalecimento e dinamização da agricultura familiar (-25,4%) e agropecuária sustentável (-11%).
Mas, além da importância das políticas públicas no apoio ao agricultor familiar, as empresas têm um papel no acesso dos pequenos produtores ao mercado. A atuação da Natura com as comunidades agroextrativistas no Norte do País é um exemplo dessa forma de relacionamento sustentável. Ao incorporar espécies nativas na produção de cosméticos, a empresa oferece para as comunidades capacitação e infraestrutura para apoiar o fortalecimento dessas comunidades em uma atuação sustentável.
A tecnologia também pode constituir uma ferramenta para o agricultor acessar as certificações socioambientais. Atualmente, aplicações do sistema blockchain têm sido estudadas em diferentes setores, com potencial de simplificar os processos de certificação que, em suas diferentes modalidades, exigem diversas etapas e a gestão de diferentes documentos (saiba mais na reportagem Tecnologia).
Em todo caso, a ampliação da produção responsável – para além das necessidades de infraestrutura, financiamento e apoio técnico – requer uma mudança de mentalidade sobre as formas de consumir e de produzir. A transição para esse modelo mais sustentável é também uma transformação cultural (saiba mais na reportagem Oferta II).
Você sabia?
Dados e curiosidades sobre agricultura e selos
- O agronegócio brasileiro ocupa a 5ª posição no mundo, com grande contribuição da agricultura familiar. A maioria dos estabelecimentos pertence a grupos familiares (84,4%), o que representa cerca de 4 milhões de unidades. São responsáveis por 35% do PIB nacional e empregam 74% da mão de obra no campo, segundo o Censo Agropecuário de 2006.
- A agricultura familiar é a principal responsável por mais da metade da produção de variedades como a mandioca (87%), o feijão (70%), o leite (60%), e rebanho suíno (59%), também segundo o Censo Agropecuário de 2006.
- De acordo com o relatório da ONU sobre a implementação dos ODS no Brasil (goo.gl/vdYj49), “o fomento à agricultura familiar contribui para a diminuição da pobreza e da desigualdade no meio rural, maior diversificação e, potencialmente, maior resiliência na produção de alimentos, o fortalecimento do abastecimento alimentar e o desenvolvimento sustentável local”.
- As certificações socioambientais relacionam-se com os temas de dois dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela ONU, o objetivo 2, Fome Zero e Agricultura Sustentável; e o 12, Consumo e Produção Responsáveis.
- Entre 2013 e 2016, a produção orgânica mais do que dobrou no País – crescimento atribuído ao aumento da participação de agricultores familiares nesse mercado, segundo dados da Sociedade Nacional de Agricultura.
- Produtos orgânicos precisam de selos de garantia para serem comercializados e eles são emitidos por diferentes órgãos, como Organizações de Controle Social (OCS), Organismos Participativos de Avaliação da Conformidade (Opac) e empresas certificadoras, que são supervisionadas por entidades acreditadoras. Há mais de 4 mil OCS e mais de 5 mil Opac atuando no País, segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e o Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos.