Um universo de inovações surge para auxiliar no combate ao desmatamento. Os benefícios para a sociedade dependerão do amplo acesso e do uso que os diversos atores fizerem das ferramentas
Por Magali Cabral
Colaborou Amália Safatle
Está nas mãos da sociedade saber usar as crescentes possibilidades tecnológicas que têm surgido para monitorar e evitar o desmatamento, intensificar a produção e, com isso, diminuir a pressão sobre a vegetação nativa. A cada momento surgem inovações no campo do georreferenciamento, do rastreamento das cadeias produtivas e do cálculo da pegada de carbono e da água, e do acesso a informações constantemente atualizadas e transparentes.
Adicione-se a isso a implementação do Novo Código Florestal, com quase todas as propriedades rurais já inscritas no Cadastro Ambiental Rural (CAR). A combinação desses dados com as novas tecnologias de informação abre enormes possibilidades para, em 15 ou 20 anos, o Brasil fazer melhor uso de suas terras para a produção agropecuária.
É possível ter ideia de como a tecnologia tem avançado por meio do estudo Bases de Dados e Ferramentas Voltadas à Gestão do Risco de Desmatamento das Instituições Financeiras, realizado pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV EAESP (FGVces) em parceria com o WWF. O relatório identificou e analisou algumas das ferramentas tecnológicas existentes que podem auxiliar empresas e instituições financeiras a gerenciarem o risco de desmatamento de seus fornecedores e clientes, entre os quais:
- Google Earth Engine, plataforma do Google para análises de metadados ambientais, com um histórico de 40 anos de imagens de satélite. Possibilita, por exemplo, sobrepor o polígono da propriedade rural a ser financiada com informações como Terras Indígenas, Unidades de Conservação e desmatamento recente.
- Global Forest Watch, sistema on-line interativo de monitoramento do desmatamento com alertas quase em tempo real de localidades suspeitas de perda de cobertura vegetal recente.
- Trase, plataforma on-line que permite ao usuário rastrear a commodity de interesse do bioma/estado/município/hub logístico do produtor ao mercado comprador.
- Agroideal, plataforma interativa de análise que permite avaliar as oportunidades econômicas de um território relacionadas à produção de soja e os riscos socioambientais associados. O usuário também pode verificar dados econômicos e socioambientais de municípios da região do Cerrado.
- Risco Socioambiental para Commodities, plataforma que facilita o cruzamento de informações para identificar possíveis impactos ambientais e sociais relacionados à produção agrícola no Brasil. O usuário pode, por exemplo, verificar dados socioambientais de estados, municípios, biomas e determinadas regiões, como o Matopiba.
Os benefícios de todo esse avanço para a sociedade dependerá, no entanto, do uso que os diversos atores fizerem das ferramentas no contexto brasileiro, que historicamente impõe uma série de obstáculos de ordem regulatória, administrativa e política, e do amplo acesso a essas inovações.
Tomemos, por exemplo, o caso do CAR. De fato, o banco de dados que está se formando após a validação dos órgãos ambientais estaduais permitirá um retrato da situação ambiental do Brasil, com base em informações georreferenciadas dos imóveis rurais, o que é fundamental para garantir a boa procedência dos produtos agropecuários.
Mas, sem o cruzamento dessas informações com a de outros bancos de dados, obtém-se apenas uma fotografia (saiba mais aqui). No entanto, por si só, os dados do CAR são importantes porque permitem que o banco ou empresa verifique se o produtor rural tem passivo de Reserva Legal e APP.
Onde a coisa pega?
A pecuária trabalha com cria, recria e engorda do gado. Nem sempre um só criador cuida de todas essas fases. Existem as fazendas de engorda que compram o boi magro de terceiros, que, por sua vez, podem já ter comprado o bezerro de outros. A fase de cria reúne os pequenos pecuaristas com menos estrutura para se adequar a uma situação de compliance. Eventualmente, uma fazenda de cria embargada pelo Ibama por desmatamento consegue transferir seus bois para serem vendidos ao frigorífico por uma fazenda legalizada. É a chamada “lavagem do gado”. Isso também pode ocorrer quando um proprietário de várias fazendas usa uma delas para “lavar” o gado das outras fazendas irregulares.
Embora essa transação irregular deixe um rastro, os agentes que trabalham com rastreabilidade não têm acesso aos bancos de dados por meio dos quais poderiam identificar a trajetória dos animais desde o nascimento. Em março do ano passado, paralelamente à operação Carne Fraca, executada pela Polícia Federal (que acusou as maiores empresas do setor de comercializar carne adulterada), o Ibama realizou a operação Carne Fria e embargou 14 frigoríficos por comprarem gado de fazendas que triangulavam gado de áreas embargadas.
Geralmente, o que os grandes frigoríficos monitoram são as fazendas que fazem a engorda, última etapa antes da comercialização do gado. As fases de cria e recria não são tão fiscalizadas e representam, portanto, os elos da cadeia da carne onde estão os maiores riscos de procedência de área de desmatamento. “(…) como os frigoríficos monitoram primariamente os fornecedores diretos, eles não têm controle sobre os fornecedores de seus fornecedores”, diz o estudo Instituições Financeiras e a Gestão do Risco de Desmatamento, realizado pelo Programa de Finanças Sustentáveis do FGVces para a Federação Brasileira de Bancos.
O Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Bovinos e Bubalinos (Sisbov), programa de rastreabilidade animal do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, foi criado para fazer o controle individual dos animais, com finalidade sanitária. Mas atende majoritariamente propriedades rurais interessadas em mercados que exigem identificação individual do animal, no caso a União Europeia que compra 2% da produção brasileira de carne bovina. Somente neste caso em que o animal precisa ter uma identificação individual (em geral um brinco eletrônico contendo as informações sanitárias e de qualidade), a rastreabilidade é realizada desde a origem.
Já os animais comercializados no mercado interno não precisam ter nenhum tipo de identificação individual, e são rastreados por lote no momento do transporte por meio das Guia de Transporte Animal (GTA).
A tecnologia pode trazer contribuições para a rastreabilidade da cadeia. A Safe Trace é uma start up mineira que desenvolveu o Bolus Intra Ruminal, uma cápsula de cerâmica que contém um chip de identificação por rádio frequência (mesma tecnologia usada pela empresa Sem Parar nos pedágios) que, depois de engolida, fica depositada no retículo (o pré-estômago dos ruminantes onde ficam retidas as impurezas). O dispositivo tem a mesma função de armazenamento de dados sobre o animal que o brinco eletrônico, porém é menos sujeito a perdas.
“Nosso objetivo é levar informação de rastreabilidade desde o produtor rural até chegar na ponta do varejo para que o consumidor possa ter detalhes do produto que está comprando”, afirma Vasco Picchi. Além dessa função, o dispositivo também facilita a gestão dos negócios e da segurança alimentar: “Assim como uma montadora tem de conhecer todos os pedacinhos do carro para, em caso de defeito de fabricação, poder fazer um recall do carro certo, a indústria tem de saber tudo que está colocando no processamento dos alimentos e, se for necessário um recall, que ela possa ser eficaz em proteger o consumidor”, afirma o empresário.
Em relação ao sigilo guardado em torno de bases de dados, queixa semelhante vem do Instituto de Centro de Vida (ICV), organização localizada em Mato Grosso que compartilha soluções de sustentabilidade para o uso da terra e dos recursos naturais.
A gestora ambiental e colaboradora da entidade, Ana Paula Valdiones, explica que qualquer tecnologia sempre dependerá da transparência das bases de dados. “Há uma série de bases custodiadas por órgãos públicos, como CAR, o GTA e o Sistema de Operações do Crédito Rural e do Proagro do Banco Central do Brasil (Sicor), que poderiam auxiliar no controle das cadeias produtivas, mas o acesso limitado ou as informações precárias impedem que muitas ferramentas de monitoramento atuem para efetivamente impedir o risco de contaminação de rebanhos por desmatamento”, revela.
Driblando problemas
Desde a Operação Carne Fria do ano passado, o Ministério Público Federal recomendou aos três maiores varejistas em operação no Brasil – Grupo Pão de Açúcar, Carrefour e Walmart – que evitassem comprar produtos pecuários oriundos de fazendas que desmataram ilegalmente a Amazônia e desrespeitaram a legislação ambiental. Até então, o monitoramento pelo varejo era feito somente até o abate pelos frigoríficos. Como dar um passo além e chegar às informações sobre as fazendas, sem constranger os frigoríficos a entregarem dados sobre os seus fornecedores?
O Pão de Açúcar procurou apoio junto à Aliança da Terra, organização que também trabalha temas ligados a sustentabilidade junto aos produtores rurais e lhes oferece assistência técnica para adequação ao Código Florestal. A Aliança, por sua vez, convidou para essa parceria a startup brasileira BovControl, uma plataforma para gerenciamento da pecuária utilizada por mais de 35 mil fazendas ativas no mundo todo. Dessa união surgiu o aplicativo Produzindo Certo.
Como funciona? Segundo a gerente geral da Aliança, Aline Maldonado Locks, o Pão de Açúcar fornece ao frigorífico cupons contendo códigos para serem entregues aos seus fornecedores pecuaristas por meio dos quais eles poderão se cadastrar no aplicativo. Com todos os dados de manejo inseridos, automaticamente suas propriedades passam a ser monitoradas pela rede varejista.
O responsável pelo escritório da plataforma BovControl, no Vale do Silício (EUA), explica que o Produzindo Certo procura ser inclusivo. Isto é, quando se identifica um produtor com algum tipo de restrição para comercializar a produção, ele é imediatamente convidado a fazer parte da Aliança da Terra, que fornecerá assistência técnica para ajudá-lo nessa adequação. “É uma preocupação do programa não excluir nenhum produtor”, afirma Murachovsky.
O estudo realizado pelo FGVces cita que o Carrefour e o Walmart também possuem sistemas georreferenciados para monitorar a sua cadeia de fornecimento. De acordo com o relatório, o Walmart, que atualmente monitora a região amazônica sobrepondo a área das fazendas de fornecedores com mapas de desmatamento, quer expandir o escopo do programa para outros biomas. Já o Carrefour comercializa carne produzida por fazendas da Marfrig certificadas pela Rainforest Alliance, selo que garante que as áreas de produção não foram desmatadas nos cinco anos anteriores à certificação.
Blockchain
O uso da tecnologia blockchain – muito usada no mercado de criptomoedas –, poderá em breve ser uma mais uma aliada no combate ao desmatamento. Essa tecnologia, conforme o artigo Impactos da Quarta Revolução Industrial, publicado na edição janeiro/fevereiro deste ano da revista GV Executivo (acesse aqui o pdf), registra transações financeiras em um arquivo digital de forma distribuída, imutável, transparente e auditável. E pode ter usos, como monitoramento de cadeias de fornecimento, de registros e de certificações diversas.
Mas como essa tecnologia pode ajudar a combater o desmatamento? O processo se dá por meio da criação de um mercado agroambiental para produtos cujo bem físico não está necessariamente atrelado ao atributo sustentável que ele carrega.
Por exemplo, um alimento produzido sem adubo ou agrotóxico tem um valor que é indissociável do produto em si. Por outro lado, existem mercadorias que podem ser separadas de um atributo sustentável: um litro de etanol produzido a partir de uma cana-de-açúcar advinda de área desmatada ilegalmente é exatamente igual a um litro de etanol produzido em uma fazenda que segue todas as normas do Código Florestal.
O mesmo acontece com a energia. O quilowatt gerado pelo carvão é idêntico ao quilowatt gerado por energia solar. “Isso gera um problema e uma oportunidade”, explica o coordenador do Programa Produção e Consumo Sustentáveis do FGVces, Aron Belinky. “O problema é que não se consegue distinguir se a energia que está sendo comprada é realmente limpa; já a oportunidade é a possibilidade de separar o bem físico e o atributo ambiental que a gente quer valorizar”, diz.
Quando se coloca um quilowatt de energia limpa na rede de distribuição, é gerado um certificado digital de um quilowatt de energia limpa que vai para o comprador. Se esse comprador for uma fábrica, ele pode associar a energia limpa ao seu produto pois terá um certificado que comprova a transação e buscar metas de descarbonização do seu empreendimento. Tanto faz a origem da energia que de fato entrou na sua fábrica, o que vale é que ele comprou um certificado de energia limpa. “Isso acontece automaticamente com custo marginal zero graças à tecnologia, que também dá conta de fazer caducar o certificado, assim que aquele respectivo quilowatt for consumido”, diz Belinky.
Isso quer dizer que a operação em si terá um valor próximo do zero pois o custo da tecnologia é fixo e será diluído ao longo do tempo. Não fosse pela tecnologia, a transação desses ativos seria inviável, pois exigiria uma câmara de liquidação a um custo relativamente absurdo (para saber mais como a tecnologia blockchain pode ajudar a combater o desmatamento clique aqui).
No setor de energia, o Ministério de Minas e Energia lançou o programa RenovaBio, que já trabalha com esse tipo de certificação, o Renewable Energy Certificate (REC). E já começam a surgir no mercado nacional plataformas de comercialização de créditos de soja certificada pela Roundtable on Responsible Soy (RTRS), organização da sociedade civil que promove a produção, o processamento e a comercialização responsável da soja em nível global.
Para todos
Embora a tecnologia ofereça tantas oportunidades, é preciso cuidar para que beneficiem todas as parcelas da população, do contrário o quadro de disparidades socioeconômicas no País corre o risco de ser ampliado.
Na visão do coordenador do Mestrado Profissional em Agronegócio da FGV EESP, Angelo Costa Gurgel, existe uma realidade de desigualdades que pode ser agravado com a implementação de tecnologias só por alguns. “Não que a gente deva frear o avanço tecnológico, mas estar atento para o fato de que ainda há muita coisa a ser feita em termos de informação, conhecimento e financiamento que facilite o acesso de uma massa importante dos agricultores brasileiros a esses meios”, avalia.
Ou seja, em um espaço de tempo curto, quem vai responder à demanda desse mercado, colocando toda a sua produção rastreada, é o agropecuarista que tiver capacidade e recurso financeiro. Já aquele que está muito longe dessa realidade, e muitas vezes nem sabe que ela existe, tende a ficar ainda mais marginalizado, mais ilegal e mais fora do contexto. “Esse cara é um indutor de desmatamento e vai continuar existindo”, alerta Gurgel.