Por Magali Cabral
Campeão mundial em disponibilidade de água doce, detentor dos mais fabulosos índices referentes a vazão, armazenamento e produção deste bem essencial à vida, o País hoje convive com escassez, conflitos de compartilhamento e queda de qualidade em diversos pontos de seu território
O mundo tem vários exemplos de países que transformam desertos poeirentos em pomares fecundos e, também, de povos que enfrentam sucessivas crises hídricas enquanto a água vaza pelo ladrão. Qualquer semelhança do Brasil com essa última categoria não será coincidência. Campeão mundial em disponibilidade de água doce, detentor dos mais fabulosos índices referentes a vazão, armazenamento e produção deste bem essencial à vida, o País hoje convive com escassez, conflitos de compartilhamento e queda de qualidade em diversos pontos de seu território.
A relação escassez-fartura versus eficiência deve “esquentar” as apresentações e os debates do 8º Fórum Mundial da Água, de 18 a 23 de março, a acontecer no Estádio Nacional Mané Garrincha, em Brasília. O evento é promovido de três em três anos pelo Conselho Mundial da Água, uma organização internacional privada, com sede em Marselha (França), presidida atualmente pelo brasileiro Benedito Braga, que é também secretário de Saneamento e Recursos Hídricos do Estado de São Paulo. Os organizadores do Fórum esperam a presença de mais de 40 mil pessoas – congressistas, especialistas, autoridades, políticos e sociedade civil.
O tema central, Compartilhando água, é importante para o Brasil, pois um de seus maiores complicadores de gestão está na distribuição pouco justa das águas no território. O que tem de caudalosos os rios amazônicos tem de mirrados os intermitentes cursos d’água na região do Semiárido. E, em que pese a boa disponibilidade hídrica nas regiões Sudeste e Sul do País, ela muitas vezes resulta em uma baixa oferta em razão da elevada demanda, conforme descreve Sérgio Ayrimoraes, superintendente de Planejamento de Recursos Hídricos da Agência Nacional de Águas (ANA) – lembrando que nos grandes centros urbanos o problema da qualidade soma-se ao da quantidade.
Como no País ninguém é dono da água, trata-se de um bem a ser compartilhado. Nascentes que brotam em território goiano e mineiro formam importantes rios que vão abastecer a Bahia, o Rio de Janeiro, em meio a vários exemplos. Cabe à ANA, o órgão regulador, gerir essas dinâmicas entre os estados, regulando e gerenciando condições, características e limites mínimos de entrega de água de uma unidade federativa a outra. No caso brasileiro, dois tópicos importantes para o Fórum serão o compartilhamento de bacias transfronteiriças (que envolvem países vizinhos) e águas subterrâneas. “Tudo isso exige um gerenciamento integrado, pois é a mesma água em diferentes modalidades no território”, explica Ayrimoraes.
Fontes e usos
A publicação Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil, lançada pela ANA, em 2017, jogou luz não somente sobre a quantidade, a qualidade e as formas de uso das águas que banham a superfície do território brasileiro, mas iluminou também um pouco desse misterioso mundo subterrâneo, onde se estima haver disponibilidade de quase 15 mil metros cúbicos por segundo – a título comparativo, pela superfície escoam cerca de 260 mil m3/s, gerando uma disponibilidade hídrica, ou seja, uma quantidade de água ofertável de quase 80 mil m3/s. “Da mesma forma como ocorre com as águas superficiais, sua distribuição também não é uniforme, ocorrendo regiões de escassez e relativa abundância”, detalha o relatório, que reconhece haver muito para se descobrir sobre as vazões subterrâneas.
Para a especialista em saneamento e recursos hídricos e idealizadora da coalizão Aliança pela Água, Marussia Whately, o estudo da ANA trouxe dados reveladores. Além do alerta para a questão da exploração de aquíferos (o Conjuntura mostra que, de 2008 até 2016, devido ao agravamento da escassez hídrica, o número de poços tubulares cadastrados no País passou de 400 mil para 1,2 milhão), toda a leitura sobre os usos da água é, na opinião dela, surpreendente. “Até então as informações eram genéricas. Agora há um detalhamento muito grande, em especial no capítulo 3 do relatório”, assinala.
Essa seção mostra que os grandes usos de água são para irrigação, abastecimento urbano, termoelétricas (resfriamento), indústria, uso animal, abastecimento rural e mineração, nesta ordem, em termos de retirada de água. Acontece que, para cada uma dessas atividades, há uma determinada quantidade de água que retorna aos corpos hídricos – por exemplo, o esgoto decorrente do abastecimento urbano. E o estudo detalha essas proporções.
A diferença entre a retirada e o retorno ao corpo hídrico é o consumo efetivo de água por setor. O caso da irrigação é o mais ilustrativo por ser de longe o mais gastador: em 2016, o setor agrícola retirou 969 m3/s para irrigar lavouras; desse total, 745 m3/s viraram planta ou proteína animal; apenas 224 m3/s retornaram ao ambiente. A irrigação é, portanto, campeã tanto em retirada como em consumo de água.
Um caso oposto é o das termoelétricas – muito utilizadas em tempos de escassez hídrica, quando as usinas hidrelétricas forçosamente reduzem a geração de energia. No mesmo período (2016), elas retiraram 216 m3/s e devolveram aos rios 213 m3/s. Ou seja, as termoelétricas, embora tenham usado mais água do sistema de abastecimento do que o setor industrial, que precisou de 192 m3/s, consumiram bem menos: apenas 2,9 m3/s, contra os 104,9 m3/s da indústria.
Para dar uma ideia do que são os quase 1 mil m3/s usados para irrigação, o segundo maior usuário de recursos hídricos no Brasil – o abastecimento urbano – utiliza para atender os cerca de 180 milhões de brasileiros que moram nas cidades metade da água da irrigação (precisamente 488 m3/s, em 2016).
“Nesse volume estão incluídas as perdas equivalentes a quase 40% [taxa referente ao volume de água que vaza das tubulações nas cidades brasileiras ou que é desviada]”, lembra Whately. E, diferentemente da irrigação, a água do abastecimento urbano volta para o corpo hídrico em forma de esgoto, tratado ou não, enquanto na irrigação a maior parte da água vira commodity e é exportada.
Para Whately, esse consumo de água pelos sistemas de irrigação deve ser ainda maior do que os valores que aparecem no relatório da ANA, uma vez que os números se baseiam no sistema de outorga (concessão de uso dos recursos hídricos em um determinado trecho de curso d’água pelo agente regulador) que não abrange todo o País. O Conjuntura ainda deixa claro que a irrigação no Brasil é considerada pequena diante do potencial estimado. E pondera: “O aumento da irrigação resulta, em geral, em aumento do uso da água. Por outro lado, os investimentos neste setor resultam, também, em aumento substancial da produtividade e do valor da produção, diminuindo a pressão pela incorporação de novas áreas para cultivo”.
Atrasos e gestão
O diretor da Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal (Adasa) e pesquisador de hidrologia e gestão de recursos hídricos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Jorge Werneck Lima, reconhece que muitos dos problemas na relação entre oferta e demanda hídrica se devem, em parte, à falta de planejamento. Ele crê, porém, que a gestão de recursos hídricos vem se fortalecendo nos últimos 15 anos.
A ANA foi criada somente em 2000 e as agências estaduais vieram depois disso. A Lei das Águas é de 1997 – a Lei nº 9.433 instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh). “A gente percebe a evolução da gestão, mas os problemas evoluem ainda mais rapidamente”, admite Werneck, que atua como coordenador nacional do processo temático do 8º Fórum Mundial.
Werneck atribui os problemas atuais de escassez não só à variabilidade climática, que tem alterado o volume e a distribuição das chuvas nas regiões do País: “Ocupamos mais o solo e isso tem trazido problemas de seca e de cheias com intensidades que não verificávamos antes, principalmente em São Paulo e no Distrito Federal”. Mais um caso sério, que afeta a qualidade, é a falta de saneamento: “Algumas cidades estão com essa questão bem equacionada, mas de maneira geral a gente trata muito pouco do esgoto gerado no Brasil”, afirma Werneck.
O relatório da ANA reitera dados já bastante conhecidos dos brasileiros, como o de que somente 43% da população urbana brasileira possuem seu esgoto coletado e tratado, e 12% utilizam solução individual com fossa séptica. O Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) considera que esses 55% da população urbana brasileira estão providos com atendimento adequado. Os demais estão divididos entre 18% que têm seu esgoto coletado e não tratado, o que é considerado um atendimento precário, e 27% que não possuem coleta nem tratamento, isto é, são desprovidos de qualquer serviço de esgotamento sanitário.
Bomba-relógio
O tópico do estudo da ANA que analisa a qualidade das águas brasileiras traz um dado que surpreendeu Marussia Whately: mapas mostram que uma boa parte do território nacional ainda está em branco no quesito análise da qualidade da água. “Das 27 unidades da federação só 17 têm sistema de monitoramento de qualidade”, afirma ela. “E os dados integrados das análises são baseados em Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO), um índice da década de 1970.” O DBO é um indicador das cargas orgânicas nos corpos hídricos que aponta a quantidade de oxigênio consumido nos processos biológicos de degradação da matéria orgânica no meio aquático.
Para a especialista, a leitura atenta do relatório como um todo revela algumas “bombas-relógio”. Ao mesmo tempo, de todos os lados, desde a Encíclica papal até o Fórum Econômico Mundial em Davos (Suíça), chegam sinais da urgência e da emergência em relação aos cuidados com a água. “Esta deve se tornar a principal agenda da sustentabilidade no século XXI. E também a mais complexa”, diz.
Os detalhes de toda essa complexidade, que vai requerer um conjunto de acordos internacionais, legislações de diferentes áreas e indicadores dos mais variados, está no livro O Século da Escassez (Cia. das Letras, 2016), escrito por Whately em coautoria com a jornalista Maura Campanili. “São montanhas de dados que abordam o tema água sobre as quais precisamos nos debruçar.”
Um dos indícios de que o Brasil não se deu conta da complexidade do tema – diz ela no livro – é o jargão “crise da água”. Por definição, “as crises são períodos de exceção dentro da normalidade. O que vemos, no entanto, é um cenário de difícil reversão”.
[:en][Conjuntura]
O mundo tem vários exemplos de países que transformam desertos poeirentos em pomares fecundos e, também, de povos que enfrentam sucessivas crises hídricas enquanto a água vaza pelo ladrão. Qualquer semelhança do Brasil com essa última categoria não será coincidência. Campeão mundial em disponibilidade de água doce, detentor dos mais fabulosos índices referentes a vazão, armazenamento e produção deste bem essencial à vida, o País hoje convive com escassez, conflitos de compartilhamento e queda de qualidade em diversos pontos de seu território.
A relação escassez-fartura versus eficiência deve “esquentar” as apresentações e os debates do 8º Fórum Mundial da Água, de 18 a 23 de março, a acontecer no Estádio Nacional Mané Garrincha, em Brasília. O evento é promovido de três em três anos pelo Conselho Mundial da Água, uma organização internacional privada, com sede em Marselha (França), presidida atualmente pelo brasileiro Benedito Braga, que é também secretário de Saneamento e Recursos Hídricos do Estado de São Paulo. Os organizadores do Fórum esperam a presença de mais de 40 mil pessoas – congressistas, especialistas, autoridades, políticos e sociedade civil.
O tema central, Compartilhando água, é importante para o Brasil, pois um de seus maiores complicadores de gestão está na distribuição pouco justa das águas no território. O que tem de caudalosos os rios amazônicos tem de mirrados os intermitentes cursos d’água na região do Semiárido. E, em que pese a boa disponibilidade hídrica nas regiões Sudeste e Sul do País, ela muitas vezes resulta em uma baixa oferta em razão da elevada demanda, conforme descreve Sérgio Ayrimoraes, superintendente de Planejamento de Recursos Hídricos da Agência Nacional de Águas (ANA) – lembrando que nos grandes centros urbanos o problema da qualidade soma-se ao da quantidade.
Como no País ninguém é dono da água, trata-se de um bem a ser compartilhado. Nascentes que brotam em território goiano e mineiro formam importantes rios que vão abastecer a Bahia, o Rio de Janeiro, em meio a vários exemplos. Cabe à ANA, o órgão regulador, gerir essas dinâmicas entre os estados, regulando e gerenciando condições, características e limites mínimos de entrega de água de uma unidade federativa a outra. No caso brasileiro, dois tópicos importantes para o Fórum serão o compartilhamento de bacias transfronteiriças (que envolvem países vizinhos) e águas subterrâneas. “Tudo isso exige um gerenciamento integrado, pois é a mesma água em diferentes modalidades no território”, explica Ayrimoraes.
Fontes e usos
A publicação Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil, lançada pela ANA, em 2017, jogou luz não somente sobre a quantidade, a qualidade e as formas de uso das águas que banham a superfície do território brasileiro, mas iluminou também um pouco desse misterioso mundo subterrâneo, onde se estima haver disponibilidade de quase 15 mil metros cúbicos por segundo – a título comparativo, pela superfície escoam cerca de 260 mil m3/s, gerando uma disponibilidade hídrica, ou seja, uma quantidade de água ofertável de quase 80 mil m3/s. “Da mesma forma como ocorre com as águas superficiais, sua distribuição também não é uniforme, ocorrendo regiões de escassez e relativa abundância”, detalha o relatório, que reconhece haver muito para se descobrir sobre as vazões subterrâneas.
Para a especialista em saneamento e recursos hídricos e idealizadora da coalizão Aliança pela Água, Marussia Whately, o estudo da ANA trouxe dados reveladores. Além do alerta para a questão da exploração de aquíferos (o Conjuntura mostra que, de 2008 até 2016, devido ao agravamento da escassez hídrica, o número de poços tubulares cadastrados no País passou de 400 mil para 1,2 milhão), toda a leitura sobre os usos da água é, na opinião dela, surpreendente. “Até então as informações eram genéricas. Agora há um detalhamento muito grande, em especial no capítulo 3 do relatório”, assinala.
Essa seção mostra que os grandes usos de água são para irrigação, abastecimento urbano, termoelétricas (resfriamento), indústria, uso animal, abastecimento rural e mineração, nesta ordem, em termos de retirada de água. Acontece que, para cada uma dessas atividades, há uma determinada quantidade de água que retorna aos corpos hídricos – por exemplo, o esgoto decorrente do abastecimento urbano. E o estudo detalha essas proporções.
A diferença entre a retirada e o retorno ao corpo hídrico é o consumo efetivo de água por setor. O caso da irrigação é o mais ilustrativo por ser de longe o mais gastador: em 2016, o setor agrícola retirou 969 m3/s para irrigar lavouras; desse total, 745 m3/s viraram planta ou proteína animal; apenas 224 m3/s retornaram ao ambiente. A irrigação é, portanto, campeã tanto em retirada como em consumo de água.
Um caso oposto é o das termoelétricas – muito utilizadas em tempos de escassez hídrica, quando as usinas hidrelétricas forçosamente reduzem a geração de energia. No mesmo período (2016), elas retiraram 216 m3/s e devolveram aos rios 213 m3/s. Ou seja, as termoelétricas, embora tenham usado mais água do sistema de abastecimento do que o setor industrial, que precisou de 192 m3/s, consumiram bem menos: apenas 2,9 m3/s, contra os 104,9 m3/s da indústria.
Para dar uma ideia do que são os quase 1 mil m3/s usados para irrigação, o segundo maior usuário de recursos hídricos no Brasil – o abastecimento urbano – utiliza para atender os cerca de 180 milhões de brasileiros que moram nas cidades metade da água da irrigação (precisamente 488 m3/s, em 2016).
“Nesse volume estão incluídas as perdas equivalentes a quase 40% [taxa referente ao volume de água que vaza das tubulações nas cidades brasileiras ou que é desviada]”, lembra Whately. E, diferentemente da irrigação, a água do abastecimento urbano volta para o corpo hídrico em forma de esgoto, tratado ou não, enquanto na irrigação a maior parte da água vira commodity e é exportada.
Para Whately, esse consumo de água pelos sistemas de irrigação deve ser ainda maior do que os valores que aparecem no relatório da ANA, uma vez que os números se baseiam no sistema de outorga (concessão de uso dos recursos hídricos em um determinado trecho de curso d’água pelo agente regulador) que não abrange todo o País. O Conjuntura ainda deixa claro que a irrigação no Brasil é considerada pequena diante do potencial estimado. E pondera: “O aumento da irrigação resulta, em geral, em aumento do uso da água. Por outro lado, os investimentos neste setor resultam, também, em aumento substancial da produtividade e do valor da produção, diminuindo a pressão pela incorporação de novas áreas para cultivo”.
Atrasos e gestão
O diretor da Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal (Adasa) e pesquisador de hidrologia e gestão de recursos hídricos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Jorge Werneck Lima, reconhece que muitos dos problemas na relação entre oferta e demanda hídrica se devem, em parte, à falta de planejamento. Ele crê, porém, que a gestão de recursos hídricos vem se fortalecendo nos últimos 15 anos.
A ANA foi criada somente em 2000 e as agências estaduais vieram depois disso. A Lei das Águas é de 1997 – a Lei nº 9.433 instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh). “A gente percebe a evolução da gestão, mas os problemas evoluem ainda mais rapidamente”, admite Werneck, que atua como coordenador nacional do processo temático do 8º Fórum Mundial.
Werneck atribui os problemas atuais de escassez não só à variabilidade climática, que tem alterado o volume e a distribuição das chuvas nas regiões do País: “Ocupamos mais o solo e isso tem trazido problemas de seca e de cheias com intensidades que não verificávamos antes, principalmente em São Paulo e no Distrito Federal”. Mais um caso sério, que afeta a qualidade, é a falta de saneamento: “Algumas cidades estão com essa questão bem equacionada, mas de maneira geral a gente trata muito pouco do esgoto gerado no Brasil”, afirma Werneck.
O relatório da ANA reitera dados já bastante conhecidos dos brasileiros, como o de que somente 43% da população urbana brasileira possuem seu esgoto coletado e tratado, e 12% utilizam solução individual com fossa séptica. O Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) considera que esses 55% da população urbana brasileira estão providos com atendimento adequado. Os demais estão divididos entre 18% que têm seu esgoto coletado e não tratado, o que é considerado um atendimento precário, e 27% que não possuem coleta nem tratamento, isto é, são desprovidos de qualquer serviço de esgotamento sanitário.
Bomba-relógio
O tópico do estudo da ANA que analisa a qualidade das águas brasileiras traz um dado que surpreendeu Marussia Whately: mapas mostram que uma boa parte do território nacional ainda está em branco no quesito análise da qualidade da água. “Das 27 unidades da federação só 17 têm sistema de monitoramento de qualidade”, afirma ela. “E os dados integrados das análises são baseados em Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO), um índice da década de 1970.” O DBO é um indicador das cargas orgânicas nos corpos hídricos que aponta a quantidade de oxigênio consumido nos processos biológicos de degradação da matéria orgânica no meio aquático.
Para a especialista, a leitura atenta do relatório do relatório como um todo revela algumas “bombas-relógio”. Ao mesmo tempo, de todos os lados, desde a Encíclica papal até o Fórum Econômico Mundial em Davos (Suíça), chegam sinais da urgência e da emergência em relação aos cuidados com a água. “Esta deve se tornar a principal agenda da sustentabilidade no século XXI. E também a mais complexa”, diz.
Os detalhes de toda essa complexidade, que vai requerer um conjunto de acordos internacionais, legislações de diferentes áreas e indicadores dos mais variados, está no livro O Século da Escassez (Cia. das Letras, 2016), escrito por Whately em coautoria com a jornalista Maura Campanili. “São montanhas de dados que abordam o tema água água sobre as quais precisamos nos debruçar.”
Um dos indícios de que o Brasil não se deu conta da complexidade do tema – diz ela no livro – é o jargão “crise da água”. Por definição, “as crises são períodos de exceção dentro da normalidade. O que vemos, no entanto, é um cenário de difícil reversão”.