Por Magali Cabral e Amália Safatle

O substantivo feminino “adaptação” significa, grosso modo, o ajuste de uma coisa à outra. No ambiente da mudança climática não é muito diferente. O termo designa as iniciativas para reduzir ou eliminar a vulnerabilidade humana assim como a e dos sistemas naturais aos riscos associados ao aquecimento global.

É diferente de mitigação, que, no caso, se refere às ações de redução das emissões de gases de efeito estufa (estas, em excesso, causam o aquecimento global, que, por sua vez, leva a uma série de riscos, entre os quais elevação do nível dos oceanos, furacões e altas temperaturas). Resumindo, se a adaptação fosse o remédio, a mitigação seria a prevenção.

Uma vez que contribuem diretamente para reduzir o efeito estufa a longo prazo em todos os sistemas sensíveis ao clima, as ações de mitigação acabaram recebendo mais atenção que as de adaptação, tanto no campo científico como no âmbito de políticas públicas e também nas agendas do setor privado.

Existem algumas explicações para isso. Uma delas é que inicialmente os esforços se direcionaram para evitar a “interferência perigosa do homem no sistema climático”, e isso vem sendo feito por meio da redução das emissões. Levou um tempo para que a ciência avançasse na certeza sobre a necessidade de também fazer adaptações a mudanças que ocorreriam mesmo que as emissões fossem diminuídas. Hoje, com o avanço no conhecimento, as agendas de mitigação e adaptação estão em convergência.

Outro motivo é que, para serem capazes de aumentar e fortalecer a resiliência de ecossistemas e das populações mais vulneráveis – em geral, as mais pobres –, suas ações requerem medidas difusas e estruturais. E isso envolve grande diversidade de setores e de atores que precisam trabalhar conjuntamente, além de tempo e dinheiro extra.

Mas, vendo por outra lente, a agenda da adaptação pode significar um apelo adicional, gerando oportunidade de abrir novas frentes de investimento para necessidades que há tempos precisam ser atendidas, como as de infraestrutura, saúde, redução de pobreza e de desigualdade. E, muitas vezes, a agenda da adaptação vem reforçar linhas de investimentos sociais e de infraestrutura já existentes, como a de combate à crise hídrica, a de controle de doenças tropicais, contenção de encostas, medidas contra inundações, entre outros exemplos.

Assim, incorporar a probabilidade e a magnitude de novos riscos climáticos nas decisões de governos e empresas tornará o País mais resiliente a essas questões que enfrenta historicamente. Essa, portanto, é uma grande oportunidade que a agenda da adaptação traz.

 

AGENDA INEVITÁVEL

Há um consenso científico de que o planeta já ultrapassou o ponto em que mitigar seria suficiente para solucionar problemas climáticos futuros, que ocorrerão até no melhor cenário previsto pelo IPCC, o painel intergovernamental de cientistas especializados em mudança do clima (saiba mais no 5º Relatório de Avaliação do IPCC).

Ainda que as emissões de gases fossem zeradas hoje, a temperatura global continuaria subindo, dado seu efeito cumulativo na atmosfera. A adaptação aos impactos gerados por este aumento, portanto, é uma agenda inevitável.

E o Brasil, seja por seu perfil agrícola, seu extenso litoral, sua grande biodiversidade, seja por sua desigualdade social, encontra-se entre os países muito expostos aos riscos da mudança climática.

Ainda assim, somente nos últimos anos começaram a surgir estudos voltados para o tema. Além do 5º Relatório do IPCC, uma referência é o estudo Riscos de Mudanças Climáticas no Brasil e Limites à Adaptação –, produzido por um grupo de cientistas brasileiros com apoio da embaixada do Reino Unido, que pesquisou quatro setores-chave da economia: agricultura, saúde, biodiversidade e energia.

No setor agrícola, em um cenário de aquecimento extremo, igual ou superior a 4 graus em relação ao período pré-industrial, as perdas na produção de feijão e soja deverão superar os 50%.

Na área de saúde, o estresse por calor – em algumas regiões do País a média poderá chegar a 30 graus (o dobro da média do planeta) – provocará perda de produtividade laboral, reduzindo em até 268 horas anuais de trabalho na agricultura, na indústria e na construção civil. A taxa de mortalidade em idosos será até 7,5 vezes maior nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Além disso, o ambiente estará mais propício a doenças provocadas por mosquitos como o Aedes aegypti.

Em biodiversidade, há previsão de um aumento de mais de 15% no risco de extinção de espécies, que na América do Sul já é o mais alto do mundo. Entre as primeiras vítimas estariam as abelhas da Mata Atlântica, as plantas comestíveis do Cerrado e várias espécies da fauna e flora litorâneas.

Devido à mudança no regime de chuvas, o déficit no atendimento da demanda elétrica no país será praticamente inevitável em um cenário de clima extremo (até 2050, a hidroeletricidade continuará sendo a fonte mais importante de geração elétrica no País, apesar de uma provável perda de participação relativa para eólica e solar). Temperaturas maiores devem fadigar também o sistema elétrico pelo lado da demanda, uma vez que as pessoas tendem a usar mais água e, por exemplo, ar condicionado.

ÁGUA, UM CASO À PARTE

A oferta de água doce dentro de um quadro de mudança climática extrema é, de fato, uma questão à parte. Em um país essencialmente agrícola (o setor responde por 70% da água consumida no Brasil) e detentor de uma matriz elétrica hídrica (está entre os maiores geradores de energia hidrelétrica do mundo, como Canadá e China), pode-se dizer que a economia nacional é movida à água.

O fato de 13% de toda a água doce da Terra estar situada em rios, lagos e aquíferos do território nacional, segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), não garante a tão almejada segurança hídrica, uma vez que esse recurso é mal distribuído. São Paulo, por exemplo, experimenta há quase dois anos os efeitos de uma seca sem precedentes e as projeções indicam grandes chances de o fenômeno tornar-se frequente. Enquanto a seca do Sudeste estava no auge, alguns rios amazônicos estavam alagando as suas margens.

O processo de adaptação em locais onde as águas sempre jorraram em abundância não é tarefa fácil. Segundo o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), José Marengo, falta à população e aos gestores do Sudeste do Brasil a percepção da escassez. Percepção esta que já existe entre os habitantes do Semiárido nordestino, dado o histórico de secas naquela região.

Apesar das várias ações de adaptação existentes na Região Nordeste – como o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e o Comunidades Semiárido –, e dessa percepção da escassez hídrica, os sertanejos continuam vulneráveis. “A seca na região ainda causa uma tensão social imensa”, atesta o coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT), Carlos Nobre.

Essa esperada irregularidade nos ciclos anuais de chuvas e na vazão dos rios contribuirá também para disseminar doenças de veiculação hídrica (cólera, tifo, diarreia etc.) e para acelerar a desertificação de regiões áridas, semiáridas e subúmidas.

 

TONS DE CINZA E VERDE

Para fazer a adaptação avançar, medidas de infraestrutura certamente são fundamentais, mas sozinhas não fazem verão: devem vir acompanhadas de evolução em outras áreas, como informação, conhecimento, desenvolvimento gerencial, fortalecimento de instituições e políticas públicas, desafios que destacaremos mais abaixo.

Informação de qualidade é uma das ferramentas mais importantes da adaptação. Por estar relacionado ao futuro, o tema lida com a imprecisão, motivo pelo qual as decisões precisam ser muito bem embasadas para não haver arrependimentos depois (no regrets). Assim, diante das incertezas, é preciso tomar uma decisão hoje em relação à qual não há dúvidas de que será benéfica no futuro, seja qual for o cenário que se concretizar.

Essas informações não precisam necessariamente ter origem do meio científico.

Há uma concordância cada vez maior de que se faz necessário o uso de fontes que extrapolam a informação científica, como a de fontes indígenas e de partes interessadas (stakeholders) locais.

Quando a adaptação chega ao ponto de precisar de uma nova infraestrutura, existem duas linhas de ação que dão clareza para os investimentos necessários: uma são as medidas de infraestrutura física (as chamadas obras “cinzentas”); outra são as medidas de infraestrutura verde, em que se recorre ao ecossistema para aumentar a resiliência das sociedades humanas. Estas são conhecidas por Adaptação baseada em Ecossistemas – AbE.

Em caso de elevação do nível dos oceanos, a primeira planejaria a construção de diques para conter o avanço das águas; a segunda plantaria e conservaria florestas de manguezais, autênticos quebra-mares na proteção das zonas costeiras. Dependendo do caso, a AbE pode ser complementar ou até substituta da medida “cinzenta”, quase sempre mais cara.

Além disso, soluções naturais baseadas nos ecossistemas tendem a gerar benefícios colaterais que já têm valor dentro da economia, como sequestro de carbono, conservação da biodiversidade ou produção de alimentos. Para saber mais sobre AbE clique aqui e aqui e acesse o estudo apresentado pela Fundação Grupo Boticário, intitulado Adaptação com base em Ecossistemas (AbE): oportunidades para políticas públicas em mudanças climáticas.

 

Foto borosjuli
Foto borosjuli

DESAFIOS ABORDADOS NESTA EDIÇÃO

Informação – Uma das lacunas que enfraquecem o desenvolvimento das agendas de adaptação de um modo geral, e acabam até justificando a tendência à inação, é a indisponibilidade de informação. É o que aponta o projeto “Adaptação para a Economia Brasileira”, realizado pelo FGVces, com apoio da embaixada do Reino Unido, do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC).

Feito com o objetivo de promover o desenvolvimento de estudos, ferramentas e atividades sobre adaptação, o estudo mostra que parte do setor empresarial, normalmente absorvido por agendas de curto prazo, ainda encontra dificuldade em compreender os riscos e as oportunidades para seus negócios associados à mudança climática, seja a probabilidade de ocorrência de eventos climáticos, seja a magnitude.

Conhecimentos mais aprofundados sobre o tema chegam a ser vistos como uma vantagem competitiva nos negócios.

Alguns autores sugerem que o esforço deve ser conjunto, tendo o Estado com o papel de fomentar o desenvolvimento de pesquisa e conhecimento pelas instituições, associações setoriais e outros organismos do gênero.

Obtenha mais informações sobre comunicação e articulação aqui.

Planejamento e governança – O acesso ao conhecimento não é o único fator que desafia as ações de adaptação. É difícil avançar na agenda também em razão de questões ligadas a planejamento e governança. Como incorporar esse assunto ao mainstream da política, das empresas e dos governos? Ou, como integrar a adaptação ao core business das empresas, fazendo com que contagie suas áreas de atuação?

Uma das maiores dificuldades é descasamento de prazo, isto é, enquanto a agenda de adaptação nos remete a 2050 e até a 2100, o planejamento estratégico das empresas não passa de cinco anos. Leia mais aqui.

Enquadramento (framing) – Fora o problema do descasamento de prazo entre a agenda da adaptação e a das empresas e de mandatos públicos, ainda há outra dificuldade: descobrir por onde o tema da adaptação ingressa nas organizações públicas e privadas. Ou seja, qual a porta de entrada para esse assunto, e como ele se conecta de maneira prática com o planejamento dessas organizações. A crise hídrica, por exemplo, tem sido uma boa oportunidade para o tema da adaptação ser abraçado nas estratégias de atuação de empresas e governos. Saiba mais sobre esses desafios aqui.

Recursos (financeiro e humano) – Diante dessas barreiras, é de se imaginar a dificuldade que a agenda da adaptação encontra para captar recursos que banquem sua implementação.

Quando se trata de recursos financeiros e humanos, pode ser o caso de não olhar para a adaptação como agenda central. Mas sim como uma agenda interligada a outras agendas, como a da saúde, e vice-versa. Ou seja, sempre haverá recursos para setores como o de saúde. Mas caberá a essas pastas incorporar a mudança climática aos seus orçamentos. O resultado pode ser tanto a realocação de recursos existentes quanto a captação de dinheiro novo. Desse modo, a questão da falta de recursos se resolve por si só. Saiba mais aqui.

Por essa amostragem, dá para perceber que, embora o tema esteja avançando aquém da velocidade que a urgência climática impõe, há muitos atores empenhados em acelerar esse processo. Diante do ritmo das alterações climáticas, adaptação já virou sinônimo de desafio. E o maior deles é fazer essa fila andar.