Cresce no País o movimento de alianças, pactos e outras articulações regionais como forma de trocar experiências, juntar forças e viabilizar a restauração ecológica em maior escala
Por Sérgio Adeodato _ Foto: Maros Misove/ Unsplash
Como uma peça do quebra-cabeça da paisagem, a restauração ecológica por meio do plantio ou regeneração natural de árvores depende da sinergia de atores e interesses para acontecer no chão. “O trabalho em rede significa mais chances de sucesso, diante das características do desafio e das necessidades de avançar em maior escala”, afirma a bióloga Ludmila Pugliese, secretária-executiva do Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, pioneiro no modelo de governança participativa hoje em expansão nas diferentes regiões brasileiras.
Criada em 2009 por lideranças ambientalistas no propósito de reunir instituições de vários perfis para somar forças e entender como e com quais atores a restauração poderia avançar no bioma, a iniciativa estabeleceu a meta inicial de recuperar 1 milhão de hectares até 2020 – objetivo mais tarde revisto para 15 milhões de hectares até 2050, área quase quatro vezes superior ao território do estado do Rio de Janeiro.
A ambição não é pequena, uma vez que hoje a estimativa é a existência de 70 mil hectares em processo de restauração no âmbito das ações ligadas ao Pacto. Nesta e nas próximas décadas, o objetivo depende de articulações entre setores, no esteio de investimentos trazidos por demandas globais que se intensificam, como a da mudança climática.
“Construímos sinergias para compartilhar informação e catalisar projetos, desde o contexto das grandes indústrias de papel e celulose até o das pequenas associações comunitárias”, explica Pugliese. Atualmente com cerca de 300 membros entre ONGs, empresas, governos e outros setores, o Pacto reúne 26 representantes no conselho coordenador, dentro de um sistema democrático de governança e tomada de decisão, com grupos de trabalho em diferentes temas, como o de tecnologias geoespaciais, que dá suporte ao mapeamento de áreas prioritárias de restauração.
O trabalho em rede tem permitido reunir referências básicas para a adoção de mecanismos de incentivo, como os Pagamentos por Serviços Ambientais, além da avaliação do processo de regeneração natural da Mata Atlântica em áreas que se recuperam após os impactos da pecuária e outras atividades econômicas. Um marco foi a elaboração do Referencial de Conceitos e Ações de Restauração Florestal, coordenado pelo pesquisador Ricardo Rodrigues, da Universidade de São Paulo, em Piracicaba (SP) – uma espécie de guia técnico para o setor.
Segundo Pugliese, autora de trabalho acadêmico sobre diversidade e relações de gênero na restauração florestal, o capital social é indispensável à atividade. Explorada desde a extração de pau-brasil pelos colonizadores, a Mata Atlântica envolve a maior população e as capitais mais desenvolvidas do País – e ali, segundo a bióloga, formou-se, ao longo da história, “uma ilha de endemismo com estrutura de viveiros, marcos legais, cooperativas de produtores, parcerias com empresas, recursos e universidades com estrutura de pesquisa”.
O mesmo não ocorre em outros biomas, onde os atores encontram-se isolados, com a existência de um vácuo na cadeia da restauração – déficit que começa a ser resolvido à medida que a experiência do Pacto é replicada.
“A lógica é da confiança e cooperação, e não da competição”, destaca Anita Diederichsen, líder global de restauração de paisagens florestais do WWF-Brasil e integrante da Global Partnership on Forest and Landscape Restoration – plataforma multissetorial que retrata a tendência de governança em rede, como um sistema de engrenagens desde o nível global até o local, nos territórios, com capacidade de influenciar políticas públicas. “Chegamos a um grau de maturidade impressionante para fazer mais pela causa”, aponta.
No Brasil, completa Diederichsen, o movimento ocupa lacunas abertas pela inoperância do governo federal na agenda ambiental: “Com o poder público junto, os resultados seriam mais efetivos”, inclusive na maior floresta tropical do planeta.
Lideranças femininas da Amazônia ao Cerrado
“No atual contexto político, a articulação multi-institucional se mostra ainda mais fundamental”, concorda Danielle Celentano, secretária-executiva da Aliança pela Restauração na Amazônia, criada em 2017, na expectativa de que políticas públicas saiam do papel, a exemplo do Cadastro Ambiental Rural (CAR) com a solução de passivos de floresta das propriedades e o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), que acabaram não evoluindo como imaginado.
“Diante disso, a estratégia prioritária no momento é mostrar ao produtor rural o valor da restauração e seu papel no desenvolvimento econômico”, explica a engenheira florestal.
“A grande sacada para a atividade na Amazônia é a interação com a geração de renda”, reforça Celentano, também gerente sênior de Restauração de Paisagens e Florestas da Conservação Internacional no Brasil. A aliança, da qual a ONG participa junto com 87 organizações, mapeou mais de 2,7 mil iniciativas de reposição de árvores no bioma, sendo 80% a cargo de associações e grupos locais, principalmente com uso econômico em Sistema Agroflorestal (SAF). Mas ainda é necessário avançar em diversos desafios.
Recente documento elaborado pelo grupo apresentou um plano de ação e dez recomendações em vários campos estratégicos, como a bioeconomia. “O diálogo permite aliar maior escala e qualidade da restauração”, observa a secretária-executiva. Além do protocolo de monitoramento das áreas em recuperação, lançado em junho, o desafio é estabelecer regras para o uso de florestas secundárias – aquelas que renascem naturalmente após o abandono de pastagens, uma questão importante na realidade do bioma. “Ainda estamos engatinhando no conhecimento sobre como recompor o que já foi impactado na região”, admite Celentano, com uma observação: “A restauração deve ser entendida como parte da agenda da conservação, prioritária na Amazônia”.
Assim como na Mata Atlântica e na Amazônia, uma liderança feminina está à frente do movimento no bioma que concentra 70% do agronegócio brasileiro. A bióloga Alba Cordeiro, secretária-executiva da Articulação pela Restauração do Cerrado (Araticum), na função desde maio, tem o desafio de jogar holofotes à necessidade de se recuperar o bioma, reduzido à metade da cobertura original, com riscos às nascentes dos principais aquíferos brasileiros. “O caminho é fazer as instituições conversarem e fortalecer quem está na ponta”, aponta Thiago Belote, especialista em restauração do WWF-Brasil, organização que liderou o lançamento da nova aliança, em novembro do ano passado, com meta inicial de restaurar 5 milhões de hectares até 2030.
Um plano estratégico que prevê a construção de banco de dados, sustentabilidade financeira e engajamento tanto de fazendeiros como de comunidades rurais direcionará a articulação de atores, como o projeto Corredor de Biodiversidade do Araguaia, um dos maiores refúgios de onças do País. A área abrange mais de 23 mil propriedades privadas em 112 municípios do Cerrado e da Amazônia, com 1 milhão de hectares de áreas degradadas que devem ser recuperadas, sob a liderança da Fundação Black Jaguar. Calcula-se que o retorno em benefícios econômicos e ambientais seja de US$ 9,5 para US$ 1 investido no projeto.
Entre as funções da Araticum – nome de um fruto nativo que simboliza as conexões em rede pelo aspecto de sua casca cheia de nós – está influenciar políticas públicas e usar inteligência geoespacial para levar soluções ao Cerrado, aproveitando as lições na Mata Atlântica.
“Queremos construir paisagens resilientes para aumento da disponibilidade de serviços ecossistêmicos, integrados aos sistemas de produção no campo”, diz Belote. O trabalho no bioma, segundo ele, tem “forte pegada da sociobiodiversidade, com a participação do conhecimento tradicional”.
É o caso da Rede de Sementes do Xingu, criada em 2007 pela demanda de povos indígenas na transição entre os biomas Cerrado e Amazônia, no Mato Grosso. Hoje com 600 coletores divididos por núcleos em 14 municípios, a iniciativa viabilizou a restauração de cerca de 7 mil hectares, com faturamento de R$ 5 milhões até o momento. “Há grande envolvimento de jovens e mulheres, demonstrando o viés social da restauração ecológica como uma arena de valorização e reconhecimento da diversidade”, enfatiza o engenheiro agrônomo Rodrigo Junqueira, secretário-executivo do Instituto Socioambiental (ISA).
Além disso, acrescenta Junqueira, a articulação tem permitido reduzir custos da restauração e inspirado o surgimento de novos coletivos de sementes, contribuindo, assim, à expansão de áreas recuperadas em diferentes regiões do País. A trajetória começou após denúncias sobre os impactos aos rios no Território Indígena do Xingu, atingidos pelos efeitos do desmatamento e da erosão do solo em fazendas do entorno. O problema, apontado por comunidades indígenas que viam ameaças à água de beber e à pesca, resultou em 2004 na campanha Y Ikatu Xingu, apoiada pelo ISA para engajar a sociedade no propósito de mapear e restaurar as nascentes da região.
Como suporte, foi aplicada a técnica de semeadura direta, ou muvuca, baseada na dispersão de uma mistura de sementes, com menor custo em comparação ao plantio de mudas. O método aliou o engajamento de produtores rurais ao conhecimento tradicional de indígenas e agricultores familiares, com geração de renda, mas havia a necessidade de aumentar a coleta para obter a principal matéria-prima. O trabalho em rede viabilizou a iniciativa no campo, e diante do sucesso o modelo foi ampliado com a criação do Redário – uma espécie de rede de redes conectando atores dos diferentes biomas para não só compartilhar experiências, mas organizar melhor a distribuição de sementes.
“Existem estudos científicos, mas falta colocar a mão na massa”, observa Junqueira, na esperança de impulso com a retomada do mercado de carbono no contexto do debate climático. Para ele, um importante diferencial desses arranjos de articulação está no capital humano e social dos vários territórios.
Estratégia transfronteiriça
No Sul do País, o movimento em rede chegou à tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai. “É necessária uma visão ecorregional para o trabalho no tema da biodiversidade com ganhos sociais e econômicos”, afirma Daniel Venturi, analista de conservação do WWF-Brasil. Na região do Alto Paraná, entre os parques nacionais do Iguaçu (PR) e Ilha Grande (SP), estão localizados alguns dos principais remanescentes de floresta do bioma, o que exige uma estratégia de governança da paisagem, visando a união entre implementação local, academia e engajamento de produtores.
“A Mata Atlântica não tem fronteiras”, diz Venturi. Com 45 atores engajados nas ações, a rede trinacional mapeou uma demanda legal por restauração em torno de 1,6 milhão de hectares. Se, na Argentina, a ênfase maior tem sido o fortalecimento de viveiros e projetos de corredores ecológicos para conservação da onça-pintada, por exemplo, no lado do Paraguai o olhar está mais na restauração para geração de emprego e renda, com apoio de empresas de erva-mate.
Na porção brasileira, o ponto de partida é a experiência da Rede Gestora do Corredor de Biodiversidade do Rio Paraná, liderada pela Mater Natura, ONG que atua há mais de uma década na região, englobando territórios do Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul em 43 milhões de hectares no total, e agora fortalece a visão internacional para somar forças.
A sinergia das redes é tida como elemento fundamental para a restauração ecológica mudar de patamar e aumentar de escala em condições favoráveis. Além de iniciativas em territórios, como o programa Conservador da Mantiqueira, alianças multi-institucionais de atuação mais ampla, como a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, influenciam nesse processo. “Antes, cada qual estava restrito ao seu quadrado”, pondera Rafael Chaves, presidente da Sociedade Brasileira de Restauração Ecológica (Sobre), fundada em 2014 para evoluir no trabalho em rede que já congregava especialistas do setor.
Diante do intenso debate sobre o tema, principalmente no cenário da mudança climática e dos recursos hídricos, havia necessidade de representatividade para a tomada de decisões e contribuições para políticas públicas, entre outras demandas que apresentavam crescente destaque na agenda. A estratégia buscava ir além de uma sala onde os restauradores se encontravam: “Devíamos mostrar importância da restauração para a vida das pessoas, com referência na ciência”, destaca Chaves. O primeiro marco veio em 2017, com a realização da I Conferência Brasileira de Restauração Ecológica, posicionando o Brasil como player global.
Mais recentemente, foi criada a Vitrine da Restauração – um mapa interativo com a localização dos vários atores em todas as regiões, de modo a promover intercâmbio e novas iniciativas de alianças locais. “A capilaridade tornou-se uma premissa”, atesta Chaves, ao informar que o objetivo é dar à Sobre o papel de “guarda-chuva de uma grande articulação em torno da atividade no País”.
Segundo ele, a restauração não deve ser uma receita pronta, mas considerar a dinâmica dos aspectos sociais e econômicos. “Houve expressivo avanço técnico-científico na última década e já existe capital intelectual para dar novos passos e disseminar a agenda não mais como um nicho. Basta acionar os mecanismos necessários para isso tudo acontecer, com a implementação de políticas públicas”, diz.