Instaurar uma cultura da transparência é um longo processo, em estreita relação com o avanço da democracia, o combate à corrupção e a superação da tradição patrimonialista

Por Diego Viana

Foto: Karsten Winegeart/ Unsplash

A “cultura da transparência” tornou-se uma expressão tão ubíqua que é fácil perder de vista a dificuldade de cultivá-la. As recentes dificuldades enfrentadas por jornalistas e pesquisadores para obter dados por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o decreto que, em 2019, tentou ampliar o sigilo de documentos do governo, e a disputa em torno do monitoramento da Amazônia reacendem a antiga preocupação: como garantir que a sociedade saiba como está sendo governada?

Instaurar uma cultura da transparência é um longo processo, em estreita relação com o avanço da democracia, o combate à corrupção e a superação da chamada tradição patrimonialista, segundo explicação de Marco Antonio Teixeira, professor de Gestão Pública da Fundação Getulio Vargas de São Paulo. 

O vínculo entre democracia e transparência é visível: no regime em que a população é considerada responsável pelo próprio destino, ela deve poder controlar o que fazem os governantes. Daí se segue o vínculo entre transparência e corrupção: a vigilância dos cidadãos dissuade os agentes de usar a coisa pública em benefício próprio. Já a tradição patrimonialista designa o hábito de não distinguir, ou distinguir mal, o que é público do que é privado; e é considerada um grande obstáculo à cultura da transparência no Brasil.

Segundo Teixeira, a transparência é “uma das reivindicações morais fundamentais nas sociedades democráticas, em que o direito do povo de ter acesso às informações é amplamente aceito”. Portanto, um traço fundamental do espírito republicano é que as decisões tomadas são expostas, não apenas em seus resultados, mas também em seus processos. “É uma questão de explicar como se chegou a esse resultado”, diz.

Assim, o princípio da democracia já aponta para aquilo que hoje se denomina accountability, isto é, a capacidade e a obrigação de prestar contas do que é feito e como se faz. A transparência, por sua vez, é indispensável à accountability: só é possível prestar contas se as informações estão acessíveis e compreensíveis. “Accountability nada mais é do que responsabilização. É prestar contas, justificar, dizer por que uma decisão foi tomada ou não”, resume Teixeira. 

Avanços democráticos

Os escândalos de corrupção nos últimos anos, somados às tentativas de reverter avanços presentes na LAI, fortalecem a sensação de que a opacidade reina no Brasil. Mas essa má fama deve ser posta em perspectiva, segundo Teixeira. Há países com séculos de lenta evolução na institucionalidade democrática, que vêm desenvolvendo há gerações as “práticas de compartilhamento da informação”. Também há países mais opacos que o Brasil, em que a participação da sociedade nas decisões do governo mal é considerada. 

Mas a principal comparação é com a própria tradição do País. Os avanços da participação social e do acesso à informação não apenas são um movimento de consolidação da democracia. São também processos de combate e erosão da tradição patrimonialista, afirma Teixeira.

A Constituição de 1988 é um marco determinante da cultura de transparência no Brasil. “Foi ela que determinou incorporar a população nas decisões de políticas públicas, fornecendo informações”, aponta. O professor assinala que o primeiro campo a avançar na transparência, a partir da Constituição, foi o dos gastos públicos. O grande marco foi a Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000, a primeira a obrigar os gestores a deixar disponíveis seus números “praticamente em tempo real”.

Outras leis importantes se seguiram, como a Lei de Transparência, de 2009, que obrigou entidades públicas a esclarecer suas despesas e receitas, e a Lei de Acesso à Informação, de 2011, que forneceu mecanismos para que a população exigisse dados do governo. Em 2015, foi aprovada a Lei nº 13.109, que define as relações do poder público com organizações da sociedade civil.

Nem tudo são avanços, porém: a Constituição prevê a criação de um Conselho de Finanças Públicas, que unificaria as informações do orçamento público. Segundo Teixeira, a ausência desse conselho facilita aos governantes mudar métodos e regras, o que leva à chamada “contabilidade criativa”, pela qual se busca esconder a irresponsabilidade com o dinheiro público.

Há várias escalas para a transparência, para além da disponibilidade das informações, a dita transparência ativa. É preciso que elas estejam acessíveis e compreensíveis, e não simplesmente escondidas no website de prefeituras, autarquias e ministérios. Em seguida, existe a transparência passiva, quando uma solicitação de cidadãos é atendida: esta é uma das inovações da LAI. 

Mas o conceito não para por aí: uma vez que a transparência está na raiz da responsabilização e da prestação de contas, sobretudo no poder público, ela também envolve a necessidade da participação social. Este é o papel das instituições colegiadas, como o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), o Conselho Nacional de Saúde (CNS) ou o Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp) e outros, além de conselhos estaduais e municipais.

Disputas

Se a transparência é o ponto de partida para a presença da sociedade nas decisões de política pública, diz Teixeira, é um campo de batalha decisivo no avanço da cultura democrática. Grupos políticos que lidam mal com a democracia sempre se esforçarão por esconder dados ou torná-los menos claros, seja ampliando o sigilo de documentos, seja atrasando a atualização do portal da transparência, ou ainda enfraquecendo espaços de participação social, como os conselhos.

No início de seu mandato como presidente, Jair Bolsonaro (sem partido) chegou a editar um decreto-lei extinguindo alguns desses conselhos, mas sua decisão foi revertida pelo Supremo Tribunal Federal.

“Essa é a marca de grupos que consideram a participação e a transparência um estorvo, que não deixam governar ou tornam as decisões mais lentas. São grupos que não entenderam que a democracia dá trabalho”, explica.

Segundo Daniela Lerda, coordenadora da Aliança pelo Clima e Uso da Terra no Brasil, da Fundação Ford, o enfraquecimento dos espaços de participação, a partir do ano passado, teve um forte efeito sobre a capacidade de pressão da sociedade civil sobre o governo. “Ao longo de 12 anos, nós nos acostumamos com uma série de mecanismos de intervenção da sociedade nas políticas públicas, que têm sido restritos ao máximo, ou até mesmo extintos: conselhos para discutir alimentação, agricultura familiar, populações tradicionais”, relata. “O resultado é um constrangimento: sem esses espaços, onde as organizações podem atuar?”

Uma cultura opaca ou transparente se reforça por conta própria, como uma bola de neve. “É assim que os avanços e retrocessos da transparência se refletem na corrupção”, explica a cientista política Ana Luiza Aranha, assessora anticorrupção do Pacto Global, dando o exemplo da medida da percepção da corrupção. Esta é a medida mais comum da presença de corrupção em um país ou sociedade. Claro que desvios percebidos não correspondem perfeitamente aos atos corruptos que acontecem de fato, a tal ponto que a atuação rigorosa de órgãos de transparência ou da imprensa pode produzir um aumento da percepção da corrupção, quando o problema, na verdade, está diminuindo.

No entanto, observa Aranha, a medida da percepção revela traços presentes na própria sociedade, isto é, características culturais. “Quando a percepção da corrupção é alta, muitos maus comportamentos são desculpados. Alguém que tem a expectativa de que a outra pessoa vai ser corrupta se permite ser corrupta também, dizendo que, se todos fazem errado, quem não faz é besta”, explica. “O que a percepção mede é o grau de tolerância das pessoas em relação ao fenômeno da corrupção. Isto tem implicações grandes nas práticas das pessoas.”

A alta percepção de corrupção tem um efeito negativo particularmente insidioso: ela pode gerar “uma certa apatia política”. “As pessoas se dizem cansadas, consideram a corrupção uma fatalidade, contra a qual não é possível fazer nada. Na sociedade civil, isto enfraquece as mobilizações e a capacidade de reivindicar”, lamenta. “Outro efeito é o moralismo: acreditar que a via de escape da corrupção é mudar o caráter das pessoas.”

Por outro lado, os avanços da lei têm um impacto visível sobre traços culturais arraigados. Aranha se refere à Lei Anticorrupção, de 2014, que mudou a prática dentro de grandes empresas: “Ouço sempre de advogados que o trabalho deles foi completamente transformado. Eles dizem que jamais se preocuparam com a possibilidade de ser apanhados quando faziam coisas fora da lei”, relata. 

A própria Lei de Acesso à Informação, apesar de enfrentar problemas e resistências, mudou a cultura. “O setor público não tem mais a postura do ‘por que você quer saber isso’. A ideia de que a informação tem que estar disponível é o ponto de partida”, afirma Aranha. Teixeira acrescenta que a categoria que mais acessa a LAI não é a dos jornalistas, mas a dos advogados: em geral, são contra tados de empresas que perderam licitações, cujo trabalho é esquadrinhar editais e outros documentos para entrar com recursos.

Transparência ambiental

Antes mesmo da Constituição de 1988, um setor já reivindicava – e obtinha – avanços de transparência: o movimento ambientalista. Ainda durante a ditadura militar, em 1981, entrou em vigor o Plano Nacional de Meio Ambiente, que continha o projeto de um sistema de informações ambientais em escala nacional, embrião do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama).

“Sem ter entrado no processo de redemocratização, o Brasil já tinha um marco legal que, para a sua época, era muito avançado, reconhecendo que o Estado tem a obrigação de gerar informação ambiental e deixá-la disponível”, diz Renato Morgado, coordenador socioambiental da Transparência Internacional. Antes da Lei de Acesso à Informação, que entrou em vigor em 2011, já existia a Lei nº 10.650, de 2003, determinando a acessibilidade das informações ambientais.

Morgado atribui esse avanço do setor ambiental à capacidade de organização e mobilização de entidades da sociedade civil dedicadas ao tema.

“O setor ambiental compreendeu desde o início que o avanço rumo à sustentabilidade é indissociável da transparência e da participação”, afirma. “Conseguiram instituir, pouco a pouco, as várias políticas do guarda-chuva ambiental: política de recursos hídricos, de mudança climática, o Snuc [Sistema Nacional de Unidades de Conservação] e assim por diante.

A sociedade civil, em parceria com setores do Estado, introduziu mecanismos de participação e transparência, tais como conselhos federais, estaduais e municipais de meio ambiente, comitês de bacia, conselhos de Unidade de Conservação. A transparência foi se constituindo em sistemas, cadastros, obrigações de transparência ativa e passiva”, completa o coordenador.

Aos poucos, foram criados diversos mecanismos de informação no setor ambiental, como o Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia (Prodes), o cadastro do Snuc, o Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos (Snirh), o Sistema de Registro Nacional de Emissões (Sirene). “O Brasil conta com uma legislação robusta e com práticas de transparência ambiental bastante avançadas”, afirma Morgado.

Esses sistemas, à medida em que se tornam públicos, permitem um controle maior sobre todo o processo que leva ao desmatamento e à degradação ambiental. Analisando o Cadastro Ambiental Rural (CAR), o Documento de Origem Florestal (DOF) e outros dados, é possível saber quem é responsável pelo desmate de uma área ou pela extração ilegal de madeira. A partir dessas informações, podem ser tomadas medidas tanto na esfera pública quanto na privada.

No entanto, ainda há muito caminho a percorrer. A falta de dados disponíveis e de definições legais está na fonte de uma das maiores causas do desmatamento no Brasil: a grilagem, ou seja, a apropriação fraudada de terras. Ainda há muitas terras públicas com propriedade indefinida (se pertencem à União ou aos estados) e sem destinação definida (se deverão virar Unidades de Conservação, Terras Indígenas, áreas quilombolas, áreas produtivas). Isso favorece quem queira invadi-las para, mais tarde, demandar sua regularização.

É fácil criar um número de CAR, a tal ponto que existem cadastros dentro de Terras Indígenas, onde não deveria ser possível. Em estados como Pará e Mato Grosso, levantamentos concluíram que as áreas reivindicadas somam uma superfície maior do que o próprio território. Os números são fortes indicativos de grilagem. A conivência de poderes locais, a proximidade com lideranças políticas e a dificuldade em obter informações distribuídas por cartórios onde a digitalização avançou lentamente foram grandes facilitadores da grilagem.

O cenário de opacidade e indefinição é um incentivo à ocupação ilegal de terras em biomas como a Amazônia e o Cerrado, segundo Daniela Lerda, da Fundação Ford. Frequentemente, o avanço sobre os territórios foi apoiado pelos governos federal e estaduais, sobretudo a partir da década de 1950, e reforçado por lobbies em Brasília. 

Ocupantes das terras têm conforto para especular e desmatar porque repetidas leis de regularização são apresentadas ao Congresso e, muitas delas, aprovadas, gerando uma expectativa de impunidade e anistia. Atualmente, o governo tenta aprovar a Lei nº 2.633, que legalizaria propriedades irregulares com até seis módulos fiscais (na Amazônia, cada módulo fiscal pode corresponder a até 110 hectares). Essa lei substituiria a Medida Provisória 910, que caducou em maio.

Além disso, a fiscalização é insuficiente. “Sem uma fiscalização efetiva do governo, seja na emissão de licenças, seja no controle feito por órgãos públicos, é difícil atribuir responsabilidades quando algo errado é encontrado”, explica. “É preciso um setor público fortalecido, que possa verificar e punir quem está agindo ilegalmente. Mas justamente os servidores que estão buscando cumprir a lei sofrem sanções de seus superiores”, alerta.

Esse é um dos motivos pelos quais o problema do desmatamento na Amazônia, que chamou atenção de observadores internacionais e pôs o governo brasileiro em conflito com financiadores como a Alemanha e a Noruega, desenrola-se, também, como disputa em torno da coleta e divulgação de informações. O esforço de enfraquecer a atuação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) na divulgação de dados de desmatamento na Amazônia tem como pano de fundo a produção de dúvidas em relação às informações disponíveis, afirma Lerda. Ou seja, a instauração de uma atmosfera mais opaca e, consequentemente, mais hostil às pressões e à participação da sociedade civil.