As recentes – e inéditas – manifestações advindas do mainstream econômico e financeiro internacional, que ameaçam boicotar produtos contaminados por desmatamento, serão capazes de forçar um outro patamar de transparência?

Por Magali Cabral

Foto: Elements

Em um extremo, regimes com tendência autoritária desconstroem conquistas socioambientais recentes, nutrindo uma briga contra o próprio passado. Na outra ponta, sociedades progressistas seguem na luta pela construção de um futuro sobre bases econômicas transparentes, verdes e menos desiguais, o chamado European Green Deal. Acrescente-se a essa polarização global uma pandemia que já tirou a vida de mais de 1 milhão de pessoas e continua tirando a saúde também dos sistemas econômicos e financeiros mundo afora. Está posto um cenário de grandes incertezas.

Esse retrato de polarização também se reproduz dentro do Brasil e pode ser observado com clareza no meio empresarial. Enquanto grande parte do empresariado brasileiro, com uma situação fiscal muito afetada pela pandemia, tende a reforçar a tendência do discurso conservador, empresas líderes, integradas nas cadeias globais de produção, sentem as pressões que chegam do mercado externo.

Essas pressões internacionais nas relações B2B não buscam apenas um posicionamento frente a temas socioambientais, mas cobram sobretudo transparência, compliance, rastreabilidade da produção, entre outras ações de governança, diz o diretor de impacto global da World-Transforming Technologies Foundation e diretor da empresa PERA Complexity B.V., da Holanda, Valdemar de Oliveira Neto, mais conhecido por Maneto. “Empresas que dependem de inserção no mundo de forma ampla, com acesso a mercado e a capital externo, precisam desvincular sua imagem da agenda autoritária brasileira, e a melhor forma de fazer isso é com mais transparência na gestão e uma agenda ambiental forte”, diz. 

Na opinião de Maneto, o Brasil já não podia se dar ao luxo de virar as costas ao mundo em razão de suas necessidades comerciais, e pode menos ainda agora, com o agravamento da situação fiscal provocada pela crise econômica e sanitária. Para ele, a saída da crise exigirá um esforço de atração de capital cada vez maior e a polarização nos negócios em nada ajuda. 

Ele explica que, de um lado, há uma massa de pequenos empresários ressentidos com o impacto econômico provocado pela pandemia e atribuindo o problema não ao governo federal, mas a governadores que não priorizaram suas necessidades nesse momento difícil; de outro, o discurso dos setores mais sofisticados e internacionalizados em relação à centralidade da questão da sustentabilidade, da conservação ambiental e das políticas transparentes, que são compromissos do País com o sistema global. “O fim desse ambiente polarizado pode levar até uma década para acontecer. Não vejo perspectiva de curto e médio prazo e acho que questões de conservação ambiental e de políticas mais transparentes, por enquanto, estarão apenas na agenda de uma elite do mundo empresarial”, deduz. 

Compõem essa elite, por exemplo, os três maiores bancos privados do País – Bradesco, Itaú Unibanco e Santander – que, em agosto passado, propuseram ao governo brasileiro um plano de desenvolvimento sustentável para Amazônia.

Segundo Maneto, esse movimento foi relevante, não apenas pela proposta em si, mas porque mostra que finalmente os bancos privados decidiram migrar de um compromisso mais conceitual, com pouco enraizamento em ações, que são os Princípios do Equador. “Após cerca de 20 anos de aparente contradição entre o discurso e a prática, os bancos deram um passo realmente importante.” 

Ao jornal Valor Econômico, o professor de Harvard e Prêmio Nobel de Economia (2016), Oliver Hart, afirmou que as empresas não podem escapar da necessidade de abraçar o tema da responsabilidade social. Para ele, as pessoas perderam a confiança nos governos e pressionam as empresas a ocupar esse vazio. A dúvida é se a pressão às empresas é mais eficaz quando feita por meio de boicote e desinvestimento, ou por meio do convencimento e do engajamento. 

Esse é o tema do estudo que Hart assina em parceria com Luigi Zingales, da Universidade de Chicago, e Eleonora Broccardo, da Universidade de Trento. O desinvestimento em empresas não sustentáveis pode, sim, provocar uma redução no preço das ações e forçar o seu “esverdeamento”.

Mas é bem possível que investidores interessados apenas em lucro imediato comprem essas ações subvalorizadas, anulando eventuais impactos sociais. O mesmo pode acontecer com os boicotes dos consumidores. Os produtos boicotados tendem a cair de preço, o que pode atrair uma onda de novos consumidores interessados apenas em preço baixo.

O Brasil segue no jogo 

Apesar de avaliar o momento atual como volátil e de grandes incertezas em razão das polarizações locais e globais, Roberto Silva Waack, presidente do conselho do Instituto Arapyaú e conselheiro da Marfrig, se diz otimista em relação à participação do Brasil nos debates internacionais no campo da sustentabilidade. “O governo brasileiro está fora desse debate, mas a sociedade civil e a sociedade empresarial estão mais dentro do que nunca e continuam pautando grande parte desse movimento.” Segundo ele, persiste uma conexão forte entre a sociedade brasileira – civil e empresarial – e o sistema financeiro internacional, tanto no mainstream econômico (fundos de investimento) quanto na filantropia. Essas atividades só não estão mais tão explícitas, talvez para evitar eventuais retaliações. Ou seja, de acordo com Waack, investimentos voltados à sustentabilidade, e muito particularmente à transparência, continuam fluindo para dentro do País. “O que os investidores internacionais mais estão pedindo é rastreabilidade. Eles têm interesse na commodity brasileira, mas querem saber de onde vem o produto e como foi produzido. A exigência da transparência na cadeia produtiva se tornou avassaladora nesse último ano”, informa.  

No entanto, esse tipo de mensagem atinge somente um núcleo de empresas de ponta e internacionalizadas, o topo da pirâmide empresarial. A massa das grandes empresas brasileiras, em boa parte, ainda não está instrumentalizada para atender essas exigências. Na avaliação de Waack, a maioria encontra-se na fase do awareness [tomada de consciência], e umas poucas já estão em busca das instrumentalizações necessárias para implementação de modelos de avaliação de externalidades. “São raras as empresas brasileiras que sabem como aplicar, por exemplo, um mapa de externalidades”. 

Assim como há mapas de risco, normalmente avaliados em comitês de auditoria,  esse mapa aponta quais são as externalidades na empresa, se positivas ou negativas. Indica também as ações para eliminar, reduzir, mitigar ou compensar as negativas e as ações para potencializar as positivas. Idealmente, esse mapa deve também mostrar como essas ocorrências podem afetar o valor da empresa.

“Esse repertório é muito novo. Imagine uma pirâmide empresarial. Faça um corte na metade. A parte de cima já ouviu falar nesses conceitos e sabe que é algo relevante. Subindo a barra para o topo, um quinto da pirâmide está efetivamente tentando usá-los. E, ali, só um décimo está usando de verdade”. O quadro parece ruim, mas o otimismo de Waack se baseia justamente neste momento inédito de muita busca por conscientização e instrumentalização, em um período de pandemia com grande restrição de recursos.

Esse avanço pode ser parte do aprendizado que a pandemia deixará para a civilização. Waack acredita que o momento joga luz sobre as desigualdades, sobre o excesso de coisas inúteis sendo consumidas, sobre a necessidade de um maior equilíbrio das relações humanas com a questão ambiental. E lembra que as projeções do mundo pós-Covid-19 já estão mostrando que, se é para recuperar a economia global, que a recuperem mais verde e com mais justiça social. Essa tendência está muito clara e surpreendentemente intensa na Alemanha, França, China, e entre os grandes fundos de investimento globais.

“Não posso acreditar que o Brasil, o país mais competitivo para surfar na onda do Green New Deal, jogará fora essa oportunidade”, diz Waack. 

A diretora-executiva de Sustentabilidade da Suzano, Maria Luiza (Malu) Paiva, tem uma percepção similar. No período recente, a evolução da transparência no ambiente empresarial vem se dando no aumento de consciência dos executivos. Algumas empresas já partem para uma segunda fase, que é a da mobilização para a mudança. A qualidade do conteúdo dos principais mecanismos de disclosure – sejam os relatos socioambientais ou os índices de sustentabilidade –  também está em estado de transição.

“Os stakeholders já não aceitam receber somente boas notícias. Expor vulnerabilidades, erros e fracassos, e os respectivos aprendizados, é uma necessidade para conquistar e manter a credibilidade junto ao público interessado. Esta não é uma evolução fácil para empresas, mas é cada vez mais necessária”, afirma Malu Paiva.

Hora de rastrear a boiada

Para a ex-ministra do Meio Ambiente e senior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Izabella Teixeira, uma nova conformação de mundo vem ocorrendo há tempos, embora em alguns países de maneira mais pontual. A ativista Greta Thunberg, a Encíclica Laudato Si’, a carta da BlackRock, as ameaças dos grandes mercados consumidores de boicotar o comércio com países não comprometidos com agendas ESG, a proposta de decrescimento econômico da Holanda não são fatos isolados, são resultados desse processo de transformação. Segundo ela, a Covid-19 chega escancarando a globalização e  tem um efeito catalisador que sinaliza a urgência de um novo business as usual

O ritmo das mudanças dependerá das escolhas de cada sociedade. “Estamos vivendo esse momento de mundo que pode resultar em uma transição passo a passo, bem articulada e calibrada, ou pode ser um processo disruptivo. Eu aposto em um processo mais calibrado e coordenado, mesmo sabendo que vamos lidar cada vez mais com as incertezas e a volatilidade dos fenômenos naturais”, afirma.

Considerando a magnitude do impacto econômico provocado pela pandemia, a ex-ministra avalia o momento como uma oportunidade de elevar o patamar das discussões sobre sustentabilidade. As principais tendências já batem à porta das empresas: trabalhar com capacidade de resiliência de setores produtivos, com coeficiente de eficiência energética, rastreabilidade e transparência. 

“O setor privado é corresponsável, junto com os governos, por essa equação ambiental. Naturalmente, haverá reações de segmentos conservadores para retardar esse processo, mas ele é inevitável e quem sair na frente terá um custo [de transição] menor”, afirma. “Não se trata mais de passar a boiada, trata-se agora de rastrear a boiada”, complementa ela, fazendo uma referência à fala do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante reunião ministerial realizada em abril deste ano, em que aparece defendendo o afrouxamento das leis ambientais. 

Conveniência

Apesar de as tendências mundiais pedirem mais transparência na esfera empresarial, o presidente do Instituto Ethos, Caio Magri, avalia que, no Brasil, o setor, que já estava aquém do ideal, ainda deu um passo atrás em relação ao período pré-pandemia. Ele atribui esse refluxo a uma percepção equivocada por parte dos empresários de que a transparência aumentará ainda mais o risco financeiro durante esse período. Como se abrir as decisões da empresa fosse aumentar os riscos de competitividade e de concorrência. Mas é o contrário: “A transparência aumenta a confiança e diminui as vulnerabilidades”. 

Para Magri, os relatos socioambientais disponibilizados para a sociedade também não estão cumprindo bem o papel da transparência. “Que empresa fez um censo autodeclarado, mostrando a diversidade em seus quadros quanto ao gênero, à raça, aos LGBTQ+? E se algumas fizeram,  quantas abriram os dados para mostrar sua real fotografia nesse tema? Quase nenhuma.” O presidente do Ethos aponta também a falta de transparência no tema das desigualdades salariais internas entre homens e mulheres, ou entre os maiores e os menores salários. 

Em 2018 foi preciso a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) entrar com uma ação na Justiça para derrubar uma liminar, impetrada pelo Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças, que proibia a divulgação das equiparações salariais dos executivos. Vitoriosa, a CVM abriu os dados e divulgou a  informação de que a remuneração anual de presidentes de grandes bancos brasileiros chegavam a cerca de R$ 40 milhões em salários e benefícios. 

No fim de setembro, o ex-diretor da Previ e especialista em governança corporativa, Renato Chaves, fez um levantamento sobre os salários dos CEO no Brasil, mostrando que os principais executivos das companhias abertas chegam a ganhar 600 vezes mais que a remuneração média paga aos funcionários das empresas em que trabalham. “Não estou afirmando que essas distorções salariais devam ser corrigidas, mas é do interesse dos stakeholders que estejam transparentes”, diz Magri.  

Na visão do ecologista e cofundador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Paulo Moutinho, pode até estar em curso uma evolução na percepção e no ferramental usado para exercer a transparência das atividades empresariais, mas o cerne, que é transformar a transparência em um objetivo orgânico nas empresas, não evoluiu. “Por não ser da área empresarial, posso estar subestimando minha avaliação, mas creio que as empresas só são transparentes quando lhes é conveniente”, diz. 

Segundo ele, quando surge um problema mais sério, a tendência é reagir  defensivamente. “Não lembro de nenhuma dizer: olha, aqui de fato existe um problema sério, pisamos na bola, falhamos e queremos mudar.” E esse “pecado” não é exclusivo dos países situados abaixo da linha do Equador. Moutinho recorda o caso da Volkswagen alemã, que veio à tona em 2015. A indústria teria escamoteado ao máximo o fato de que seus automóveis movidos a diesel estavam equipados com um software que manipulava dados sobre emissões de poluentes. “Primeiro disseram que o problema não existia, depois assumiram que de fato havia uma falha no software. Só mesmo quando o calo apertou, a direção revelou se tratar de uma fraude e pediu desculpas.” 

O dirigente do Ipam questiona a transparência dos grandes financiadores do mercado internacional que atualmente ameaçam boicotar produtos brasileiros em desalinho com os princípios ESG. A poluição das cadeias de valor contaminadas pelo desmatamento parece ser o ícone desse processo, em associação com as queimadas e os direitos humanos, mas Moutinho enxerga outros interesses por trás de ameaças tão contundentes. Segundo ele, os europeus historicamente sempre protegeram seus mercados e seus produtores de países competitivos como o Brasil e esse, na opinião dele, é mais um caso típico de transparência conveniente por parte desses players

Outro caso controverso mencionado por Moutinho é o da Moratória da Soja, pacto firmado em 2006 entre entidades representativas dos produtores de soja, sociedade civil e com o governo, proibindo a compra de soja proveniente de áreas recém-desmatadas na Amazônia. Segundo ele, os envolvidos em importação e exportação de commodities agrícolas gostam de citar a Moratória da Soja em seus instrumentos de disclosure como um caso de sustentabilidade. Contudo, Moutinho lamenta que a busca por uma moratória para o Cerrado, que é o berço da produção de soja no Brasil, não esteja prosperando por resistência desses mesmos players.

“No Cerrado do Mato Grosso, 70% das propriedades produtoras de soja estão ilegais do ponto de vista de compliance com o Código Florestal e uma eventual penalidade excluiria produtores do sistema, o que não é do interesse dos traders”, diz Moutinho. 

Qualquer previsão sobre um desfecho desse cenário no Brasil é exercício de adivinhação. No entanto, aproveitando a metáfora da “onda” mundial que está se formando no horizonte e que precisa ser “surfada” pelo Brasil, há uma convergência de opiniões de que o setor empresarial tem um papel essencial no sucesso dessa performance. Enquanto Maneto detecta a ausência de lideranças no setor com uma força capaz de influenciar a base da pirâmide na direção da sustentabilidade, o otimismo de Izabella Teixeira não esmorece: “Chegou a hora de o empresariado brasileiro mostrar seu valor. Eles precisam deixar de apenas  tangenciar o problema, incorporar o conceito de corresponsabilidade que está emergindo no mundo entre os grupos privados e ambicionar, de fato, uma agenda de sustentabilidade”. 

Decisões opacas

Durante a produção desta reportagem, surgiu o assunto das entidades do setor agropecuário que, em dezembro de 2019, se desfiliaram de uma só vez da  Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura sem explicitar publicamente o que as levou a tomar essa decisão. Na falta de transparência sobre o motivo da debandada, prevaleceu a ideia de que a saída das entidades teria ocorrido em razão de um pedido feito pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, insatisfeito com o posicionamento mais contundente da Coalizão frente ao aumento das queimadas e do desmatamento na Amazônia. 

Para dirimir as dúvidas que permaneceram no ar, a reportagem procurou a Coalizão e três entidades desfiliadas na ocasião: a Sociedade Rural Brasileira (da qual Salles já foi dirigente), a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) e a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). A Coalizão não quis se pronunciar. A Abiove enviou um e-mail justificando o seu afastamento “pelo distanciamento da forma de posicionamento da organização”. As demais entidades não responderam a solicitação de entrevista.