Empresas, fundações e sociedade civil já trabalham em conjunto para gerar impactos positivos com maior escala e qualidade
Por Magali Cabral
A mudança do clima está tão perigosamente próxima do seu ponto de inflexão, a partir do qual não haverá mais possibilidade de retorno, que precisa de toda participação que puder arregimentar. Plantar uma árvore ou impedir que se derrube uma, deixar o carro na garagem sempre que possível ou lotá-lo de caronas são gestos necessários e inspiradores mas, a esta altura, insuficientes. É preciso dar mais eficiência às ações por meio da participação em redes que compartilham lógicas semelhantes, gerando impactos positivos com maior escala e qualidade.
Por exemplo, grupos que se associam para comprar alimentos orgânicos diretamente de produtores locais, além de cuidarem da própria saúde consumindo alimentos frescos e livres de pesticidas, também diminuem sua pegada de carbono – gerando menos lixo com embalagens, não contribuindo com o comércio de agrotóxicos, nem com o transporte rodoviário de longas distâncias. Outro aspecto positivo desse tipo de ação em rede é o aumento da renda dos pequenos agricultores, que se livram dos atravessadores por meio da venda direta. Ganha a rede, ganha o clima e ganha o pequeno agricultor de orgânicos.
União, sinergia e rede são palavras-chave quando se pretende gerar impactos positivos e de grande alcance, como requer o combate à mudança climática. Essa é uma proposta que começa a ganhar corpo na pauta das grandes empresas que fazem Investimento Social Privado (ISP), mas ainda com muitos desafios pela frente. Fomentar articulações entre grandes grupos empresariais não é tão simples quanto formar um clube de compra de orgânicos no bairro. Em geral, as fundações e os institutos encarregados de aplicar o ISP de grandes corporações já têm as suas agendas em andamento e nem sempre os interesses são coincidentes.
Mas esse é um esforço que pode valer a pena. Na opinião de Carlos Rittl, secretário executivo do Observatório do Clima, gerar impactos positivos em qualquer agenda social ou ambiental – em redução de desigualdade social e de gênero, inclusão social, promoção de geração de renda, direitos humanos, segurança alimentar, hídrica ou energética – será muito mais difícil e custoso se for em meio a um cenário agudo de crise climática.
Populações inteiras que moram em áreas sujeitas a eventos extremos, seja no Semiárido nordestino (agravamento da seca), seja em cidades (seca, temporais e alagamentos), estarão muito mais vulneráveis. A prioridade dos mais necessitados entre populações de baixa renda passará a ser a luta pela sobrevivência e não mais a ascensão de patamares sociais. “Ter a compreensão desse nexo [entre agenda social e clima] pode estimular a formação de redes de Investimento Social Privado em mudanças climáticas como forma de as organizações alcançarem impactos positivos mais expressivos no futuro”, afirma.
Rodrigo Brito, gerente do programa Aliança Água+ Acesso no Instituto Coca-Cola Brasil, também argumenta em defesa de uma articulação de redes entre as organizações de ISP em torno do tema. “Com a complexidade dos desafios sociais e ambientais do País, uma empresa que age de forma isolada contribui menos do que poderia para uma causa quando comparada a um conjunto de empresas e organizações atuando de forma conjunta ou complementar.”
Segundo Brito, dado que o número de empresas que fazem ISP e o volume investido ainda não são expressivos frente às demandas do País, realizar coinvestimentos, atuar de forma sinérgica e complementar com outras organizações, sejam privadas, públicas ou da sociedade civil, contribuem para otimizar recursos, reduzir redundâncias e ampliar eficiência. “Com maior alinhamento e sinergia, destinam-se mais recursos para a ponta”, diz ele.
Por exemplo, se 10 empresas fazem investimentos em projetos individuais, estamos falando de 10 vezes mais custos em áreas meio – gestão, avaliações, comunicação, consultorias e relatórios. Além disso, quando se tem 10 projetos isolados, são 10 curvas de aprendizado distintas em atores que não estão se conversando. “Ou seja, temos iniciativas que geram 10 vezes mais custos com áreas meio e que reduzem em 10 vezes o aprendizado que poderia ser gerado e compartilhado coletivamente”, calcula Brito.
O Instituto Iguá, ligado à empresa Iguá Saneamento e parceiro do Instituto Coca-Cola no programa Aliança Água+ Acesso (mais sobre o programa em box a seguir), já foi criado com a perspectiva de trabalhar em rede. Fácil entender o porquê. “O desafio do saneamento no Brasil é tão enorme que nascemos sabendo que sozinhos não faríamos qualquer diferença no cenário nacional, por mais capital destinado ao ISP que tivéssemos”, revela a diretora-presidente do instituto, Renata Ruggiero Moraes.
Os cálculos estimados para universalizar o saneamento (com acesso aos serviços de água, esgotos, resíduos e drenagem) é de R$ 508 bilhões, de acordo com dados do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), do extinto Ministério das Cidades. “A universalização depende de soluções sistêmicas e soluções sistêmicas nunca conseguem sair de um ator só”, observa.
Em que subtema investir
Quando se fala em mudança climática no Brasil, pensa-se logo em florestas, uma vez que o desmatamento é um dos grandes vilões das emissões brasileiras. Mas, na opinião de Rittl, no universo do ISP, a água é um dos temas que podem gerar muita sinergia por ter uma relação direta com a manutenção da vida humana. Um dos projetos mais emblemáticos do Semiárido nordestino, o Um Milhão de Cisternas, tornou-se política pública depois de, segundo Rittl, multiplicar-se por meio de uma rede de organizações comunitárias ligadas à Igreja Católica e às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
“A melhor gestão da água passa a ser ainda mais importante em um cenário de mudança climática. Assegurar água em quantidade e com a qualidade necessária para a manutenção da vida humana deve se tornar mais difícil com o tempo”, acredita Rittl. Hoje ainda é possível construir boas estratégias de armazenamento de água no Nordeste, como o Cisternas nas Escolas, ou as Barragens Subterrâneas. Mas à medida que parte do Semiárido se tornar uma região árida, executar projetos como esses poderá nem ser mais possível.
De acordo com Ângelo Lima, secretário executivo do Observatório das Águas, para se integrarem e se articularem no combate à mudança climática, as organizações precisam vencer um desafio cultural que tem origem em nosso processo educacional de segmentar demais as várias temáticas. Para ele, a questão do clima transpassa várias disciplinas, como Matemática, Geografia, Ciências, História, e acaba não sendo tratada com propriedade por nenhuma delas. Mudar esse modelo é um desafio para quem investe na área educacional. Outra sugestão de Lima para iniciar investimentos diretamente no tema é realizar estudos de riscos decorrentes do não investimento em políticas públicas e privadas nessa área e o impacto dessa inércia nos negócios.
Perguntado se as grandes empresas já não estariam fazendo isso, uma vez que a operação de muitas delas depende do uso de água potável, Lima disse que há de fato uma percepção de que as empresas já admitem o problema. “Mas uma coisa é ter noção do problema, outra é passar desse entendimento para uma ação efetiva”. Ele conta que, em relação à crise hídrica de 2014 e 2015, as empresas só começaram a agir mais efetivamente em São Paulo depois que viram suas torneiras na iminência de secar – mas é verdade também que o governo estadual passou um bom tempo negando a existência da crise.
Segundo Lima, uma grande empresa não consegue fazer um estudo de captação alternativa de água em pouco tempo. “A Braskem, por exemplo, levou cinco anos para desenvolver um projeto alternativo à captação de água da bacia do Rio Guandu, que segue sob forte estresse hídrico [a bacia hidrográfica do Guandu abastece a cidade do Rio de Janeiro e parte da Baixada Fluminense]”. No caso de médias e pequenas empresas, Ângelo Lima não vê sequer preocupação com o tamanho do problema hídrico em um cenário de crise climática. “Sempre que a chuva volta a cair, ela ‘lava’ a memória das pessoas.”
Entretantos
Trabalhar junto é fundamental, mas é preciso fugir da armadilha da morosidade nas ações, ou da perda de criatividade, conforme adverte a diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade (iCS), Ana Toni. “Aquela coisa de ter que combinar tudo com todo mundo o tempo todo pode tolher a possibilidade de se fazer coisas diferentes”, afirma. Para ela, embora a sinergia seja absolutamente fundamental, dada a magnitude do combate à mudança climática, há um risco de se gastar muita energia para a sinergia e não em seu objetivo final. “Para a ação conjunta ser produtiva, é preciso aplicar metodologia, ter uma boa moderação e curadoria. Caso contrário, viram reuniões intermináveis de troca de informações em vez de planejamento de ações conjuntas.”
Feita essa ressalva, Ana Toni afirma que investimentos em mudança climática requerem necessariamente uma atuação sinérgica, principalmente no campo do ISP. “Esse campo só pode ser pensado com sinergia e cooperação porque mudança climática se dá no concreto – na mobilidade urbana, na energia, na educação. E normalmente as fundações trabalham com questões concretas”.
Também por ser um tema sistêmico, a cooperação é mais do que necessária. Em mudança climática não dá para resolver um problema pequeno de emissão de CO2, porque não terá nenhum impacto em nível global. “Os financiadores globais rapidamente perceberam que têm de trabalhar em articulação e se organizar profissionalmente para fazer isso”, afirma. “Especialmente na Europa, a reunião de organizações filantrópicas para debater o tema já é muito orgânica. Essa é uma das atribuições, por exemplo, do European Climate Foundation.”
Outra iniciativa nesse sentido é o Funders Table, uma mesa de aprendizado e debate informalmente organizada pelo ClimateWorks Foundation. O iCS costuma participar dessas mesas, e Ana Toni explica que a Funders Table não existe enquanto instituição. “Ela não é nada e ao mesmo tempo é tudo. Reúne organizações filantrópicas para aprender sobre o tema. São encontros para se pensar em metodologias de ação, para debater estudos de casos”. Em sua opinião, na área de clima, a abertura para aprender precisa ser enorme – não se trata mais de tentar criar o seu modelo de ação de combate à mudança climática, mas de copiar e trabalhar junto com o que já existe mundo afora, especialmente na Europa, nos Estados Unidos, na China e na Índia.”
CASOS QUE “CAÍRAM” NA REDE
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Aliança Água+ Acesso – Formada inicialmente por nove empresas, institutos e organizações da sociedade civil em 2017, hoje já são 15 delas atuando em um modelo de governança participativa em oito estados brasileiros, impactando cerca de 77 mil pessoas em mais de 200 comunidades. Segundo a diretora-presidente do Instituto Iguá, Renata Ruggiero Moraes, o Pacto Global das Nações Unidas usou esse programa para mostrar como empresas e organizações podem trabalhar juntas para gerar impactos socioambientais positivos para a sociedade.
A Aliança foi estruturada em um modelo de rede com dois investidores, o Instituto Iguá e o Instituto Coca-Cola; três instituições de apoio, a Fundação Avina, o Instituto Trata Brasil e a World Transforming Technologies (WTT), empresa especializada em inovações tecnológicas com finalidade de impacto socioambiental; além de 10 organizações de acesso, compostas por ONGs de bases comunitárias que atuam nos territórios e já têm, portanto, conhecimento e vínculo criado com as comunidades.
“As ONGs são os nossos parceiros de implementação. São elas que nos trazem as realidades dos locais mais críticos e nos apontam as melhores soluções em cada caso”, explica Moraes. Segundo ela, ter dinheiro sem ter uma organização na ponta não adianta nada. O mesmo quando se tem uma boa organização na ponta, mas não há recursos financeiros. “Esse trabalho feito na ponta é a chave para o sucesso do Aliança”, afirma. Moraes conta que, antes de começar o projeto, um levantamento identificou que metade dos projetos de acesso à água que investiram só em infraestrutura foram sucateados entre dois e cinco anos.
O programa Aliança Água+ Acesso direciona uma parte dos investimentos para a infraestrutura e outra para montar os modelos de gestão comunitária do sistema de água. “Por intermédio das ONGs, mobilizamos a comunidade desde o início, desde o planejamento do projeto. A comunidade desenha e constrói junto o sistema, e depois define as regras de como o sistema será gerido. Desse modo, a comunidade fica capacitada para, dali em diante, seguir sozinha na gestão”. Nas comunidades, os gestores do sistema cobram uma taxa simbólica dos usuários, suficiente para dar conta da manutenção.
Outro ganho com esse nível de sinergia é a aproximação da população com o tema da água, o que, segundo Renata Moraes, ajuda na redução do consumo e da inadimplência. “Há também um efeito de empoderamento comunitário, pois a partir do momento que já estão organizados, eles conseguem lidar com outros temas socioambientais para além da água”.
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Babaçu e Açaí – A Votorantim Cimentos uniu-se recentemente ao Instituto Arapyaú para, juntos, investirem no projeto Sobral de Futuro, no Ceará. Trata-se de um planejamento territorial que integra também universidades e outras organizações da sociedade civil local para debater o município com uma perspectiva para 2030. Durante os debates para um levantamento de diagnósticos da potencialidade local, a gerente de Transformação Social da empresa, Priscilla Alvarenga, conta sobre o surgimento de uma oportunidade inesperada:
“A ideia era investir em potencialidades locais mesmo que não estivessem ligadas à nossa cadeia. No decorrer das conversas, descobrimos uma comunidade [em Serra da Meruoca, no Nordeste cearense] vivendo abaixo da linha da pobreza, com renda média mensal per capita de R$ 282, bem próxima à unidade da Votorantim em Sobral, e que dominava bem a cultura de cultivo do babaçu.”
Como a planta da Votorantim em Sobral já utilizava caroço de babaçu produzido no Piauí para aproveitamento energético, passou a adquiri-lo ali perto, diminuindo assim sua pegada de carbono e aumentando em 61% a renda da comunidade. Em 2018, a comunidade forneceu 718 toneladas de caroço para a fábrica da Votorantim. A provocação agora é começar a fechar o ciclo para uma economia circular, criando, por meio de novas parcerias, um negócio social de extração de óleo de babaçu (usado na indústria alimentícia e cosmética) com bom valor agregado.
Uma inspiração para o projeto de Sobral é o caso clássico de economia circular de Xambioá, no Tocantins. Nos últimos seis anos, a comunidade fechou o ciclo de aproveitamento integral do babaçu. Do coco fabricam biojoias, com um comércio já estabelecido na região, do fruto fazem óleo, e o resíduo vira biomassa para os fornos da Votorantim, ou segue para fábricas de ração animal.
Outro caso da empresa no Pará é o uso do caroço do açaí também como biomassa para a geração de energia. Segundo Fábio Cirilo, coordenador de Sustentabilidade da Votorantim Cimentos, 83% do fruto do açaí é composto do caroço, que até algum tempo não tinha nenhum aproveitamento. “Vimos ali uma boa fonte de energia para os nossos fornos em Primavera. Atualmente estamos coletando 96 mil toneladas de sementes de açaí por ano, o que traz uma redução de 117 mil toneladas de CO2 anuais. Isso se calcularmos só o impacto direto, isto é, trocar o coque de petróleo pela semente de açaí. Se expandirmos o olhar para o ciclo de vida do açaí adquirido, com o fato de as sementes não estarem mais se degradando nos aterros ou nos leitos dos rios, a fábrica deixa de gerar, com carbono evitado, cerca de 200 mil toneladas de CO2”.
Em 2018, A Votorantim Cimentos consumiu 40 mil toneladas de caroço de açaí, o que corresponde a 14,3% de substituição térmica. Nessa cadeia estão envolvidos os produtores de açaí, fruto que sustenta dezenas de comunidades da região, e parceiros locais que processam as sementes.
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Para mais casos inspiradores, consulte:
MapBiomas – Iniciativa multi-institucional envolvendo universidades, ONGs e empresas de tecnologia que se uniram para contribuir com o entendimento das transformações do território brasileiro com base em um mapeamento anual da cobertura e uso do solo no Brasil.
Instituto Trata Brasil – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), criada em 2007 por um grupo de empresas com interesse nos avanços do saneamento básico e na proteção dos recursos hídricos do País.
Aliança pela Água – Articulação da sociedade civil criada em outubro de 2014 para enfrentamento da crise hídrica em São Paulo e construção de uma “Nova Cultura de Cuidado com a Água” no Brasil. É composta por mais de 60 organizações e movimentos das áreas de meio ambiente, direitos do consumidor, direitos humanos, educação, ativismo e inovação.
Vicunha Têxtil – O uso da água na indústria têxtil é o mote de um projeto realizado pela Vicunha em parceria com o Movimento Ecoera, o “Pegada Hídrica Vicunha”. Um dos resultados da iniciativa foi a produção de um estudo que revelou o consumo de 5.196 litros de água para cada calça jeans fabricada no Brasil. O levantamento utilizou métricas próprias para mapear o consumo de água no ciclo de vida de uma calça jeans no Brasil, desde o plantio do algodão até o consumidor final.