O ISP começa a ser direcionado para fontes mais limpas, no contexto da mudança climática e do bem estar social, mas ainda há bastante espaço para crescer
Por Andrea Vialli
O salão onde acontecia o pregão viva-voz da antiga Bolsa de Valores de São Paulo, atual B3, já não é mais usado para este fim – a negociação dos papéis da bolsa passou a ser eletrônica em 2005, e os ruidosos operadores saíram de cena, dando lugar a um espaço plácido onde painéis exibem o sobe-desce do mercado de capitais. A mudança foi um sinal dos tempos, em que a tecnologia forçou uma mudança irreversível.
A mesma ruptura é esperada para a emergência climática. Em junho de 2019, a própria B3 sediou um evento sobre mudança do clima, onde ela, como empresa, associou-se à plataforma Compromisso com o Clima, uma iniciativa que une companhias que desejam compensar, juntas, suas emissões de gases de efeito estufa por meio do apoio a projetos sociais e ambientais com foco na economia de baixo carbono, para a qual a adoção de fontes mais limpas e renováveis é crucial.
A plataforma foi criada em 2017 e teve como fundadores a multinacional de cosméticos Natura e o banco Itaú – após a assinatura do Acordo de Paris, as empresas estavam buscando um novo sistema de compensações das emissões que substituísse o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), por meio do qual projetos de redução das emissões poderiam gerar créditos de carbono.
Na ocasião, a plataforma lançou o primeiro edital, com o apoio do Instituto Ekos Brasil, que tinha como objetivo selecionar projetos que combinassem benefícios sociais e redução de emissões. Por meio do aporte de recursos nesses projetos, as empresas compensavam uma parte das suas emissões de carbono, em um mecanismo inspirado no mercado de carbono.
Este ano, B3 e Lojas Renner se uniram à iniciativa, o que possibilitou a criação de um novo edital com as mesmas premissas. “O objetivo é construir uma plataforma a mais aberta e flexível possível, para atrair outras empresas, de todos os portes, que queiram compensar suas emissões investindo nos projetos”, diz Keyvan Macedo, gerente de sustentabilidade da Natura.
O edital lançado este ano atraiu 10 projetos de ONGs e empresas que estão na fase final de quantificação e validação de suas emissões por meio de metodologias comprovadas de gestão de carbono. A expectativa é de que até o final de setembro os projetos, nas áreas de energia renovável, eficiência energética e conservação em florestas, já estejam visíveis na plataforma e possam ser investidos.
Os quatro membros da plataforma (Natura, Itaú, Lojas Renner e B3) detêm a preferência de compra dos créditos de carbono gerados pelos projetos, mas a ideia é atrair o maior número possível de empresas. A B3 terá como papel incentivar a adesão das empresas listadas em bolsa, a começar pelas companhias que já fazem parte das carteiras verdes, como a do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE).
“Temos um potencial muito grande de adesão das empresas de capital aberto na plataforma, inclusive para serem porta-vozes dessa mensagem, pois são empresas que buscam acelerar a agenda do clima”, diz Sonia Favaretto, diretora de sustentabilidade da B3. Segundo ela, as 29 companhias que fazem parte da carteira do ISE já estão bastante familiarizadas com o tema mudança climática: 100% delas fazem inventários de emissões, 48% indicam realizar compensações das emissões que não conseguem reduzir e 33% utilizam mecanismos de compensação para alcançar metas de redução de carbono.
Unir o modelo já conhecido dos mercados de créditos de carbono ao Investimento Social Privado (ISP) foi uma das motivações para a criação da plataforma, segundo Macedo, da Natura. Mais do que isso, foi uma evolução da forma como a empresa investe na compensação das emissões que não consegue reduzir em suas atividades.
Desde que lançou o programa Carbono Neutro, em 2007, a companhia já apoiou 38 projetos de compensação de emissões, 32 deles no Brasil e outros seis na América Latina, que geraram R$ 1,6 bilhão em benefícios socioambientais, segundo o cálculo da empresa que leva em conta a metodologia Retorno Social sobre o Investimento (SROI), que mede em valores monetários como os projetos apoiados impactam a vida das comunidades. “No Brasil, o ISP na área de mudança climática e energia limpa ainda é pouco visível. Mas há fundos internacionais que trabalham com essa motivação e a tendência deve chegar aqui”, diz o executivo.
Historicamente, o ISP no Brasil atua com maior prioridade nas áreas de educação e formação de crianças e jovens, mas há institutos e fundações com adesão ao meio ambiente. O mais recente Censo do Gife mostrou que, dos 323 programas de atuação do ISP no País, apenas 7% são identificados como ambientais (saiba mais nesta reportagem).
“O investimento é muito tímido frente ao cenário ambiental que temos no Brasil e no mundo ”, diz Andrea Apponi, diretora executiva do Instituto Arapyaú, cuja atuação se pauta pelo fomento à economia de baixo carbono. O Brasil é o sétimo maior emissor de gases de efeito estufa do mundo.
Em meio ao cenário preocupante, no entanto, o Brasil coleciona alguns casos positivos de Investimento Social Privado reunindo ganhos ambientais e sociais e capazes de inspirar mais iniciativas.
Menos lenha no fogão
Um dos projetos mais emblemáticos na combinação entre impacto social e benefícios ambientais apoiados pelo ISP é o dos Fogões Eficientes, do Instituto Perene, organização sem fins lucrativos com sede em Salvador e que tem a Natura como um dos principais apoiadores.
Desde 2008, o instituto dedica-se a melhorar a qualidade de vida dos moradores de áreas rurais do Recôncavo Baiano que utilizam fogões a lenha para cozinhar. No Nordeste rural, mais de 85% das famílias dependem da lenha e inalam diariamente a fumaça gerada por fogões rudimentares. O trabalho do Perene consiste em instalar fogões de alvenaria mais eficientes, que consomem menor quantidade de lenha (até 60% menos) e dotados de um sistema de exaustão por chaminés, que lança a fumaça para fora das casas.
O programa já construiu 10,7 mil fogões na região do Recôncavo e agora a tecnologia está sendo levada para a região da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, onde deverá beneficiar o povo Kalunga, remanescente de quilombolas. O Instituto Perene estima que três mil famílias da região dependem da lenha para cozinhar. “Essa é uma tecnologia de transição, mas que tem chamado a atenção de apoiadores interessados em investir em projetos em linha com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”, diz Guilherme Valladares, diretor do Instituto Perene.
Um dos componentes do sucesso do projeto é buscar visibilidade internacional: por se financiar com a venda de créditos de carbono, o Instituto Perene buscou a certificação da Fundação Gold Standard, da Suíça, organização criada pelo WWF e outras ONGs para apoiar projetos em consonância com os ODS e o Acordo de Paris. O projeto dos fogões também é o único do Brasil premiado pela EPA, a agência de proteção ambiental americana, e foi considerado pela agência Moody’s como elegível para investimento filantrópico.
Revisão de estratégia
Projetos com tecnologias simples, facilmente replicáveis em contextos diversos e geradores de impacto social e ambiental são os que estão na mira do ISP com foco em energias limpas.
O Instituto Nissan, por exemplo, braço social da montadora japonesa no Brasil, fez uma revisão de sua estratégia de ISP entre os anos de 2017 e 2018 para torná-la mais conectada aos negócios da companhia. Definiu como prioritários os eixos de mobilidade (soluções sustentáveis para a mobilidade urbana), meio ambiente (ênfase em educação ambiental), tecnologia/inovação (energias renováveis) e educação profissionalizante. Em 2018, realizou um edital para escolha dos projetos que apoiaria este ano. Dos 124 inscritos, o Instituto Nissan escolheu cinco, que recebem um aporte de R$ 1,7 milhão ao longo de 2019.
Além dos recursos, as organizações escolhidas passarão por capacitações em temas como gestão e marketing e serão avaliadas a cada três meses, com base em indicadores financeiros e de impacto dos projetos. “O investimento só faz sentido se pudermos ajudar a organização a amplificar sua contribuição social. É esse o retorno que buscamos”, diz Rosane Santos, gerente sênior de responsabilidade social da Nissan.
Outro requisito da atual estratégia de ISP da Nissan é apenas lançar editais a cada dois anos para que os projetos tenham tempo para amadurecer. “O projeto social precisa de um lastro maior de tempo para entregar resultados”, explica Santos.
Luz para (quase) todos
Um dos projetos apoiados pelo Instituto Nissan no ciclo de 2019 é da organização Litro de Luz, que desenvolve soluções de iluminação ecológicas e de baixo custo para comunidades carentes. A iniciativa apoiada prevê a instalação dos postes de iluminação, feitos com garrafas PET, painel solar, bateria, circuito, cano de PVC e lâmpadas LED, para áreas coletivas no município de Duque de Caxias (RJ).
Na tecnologia criada pelo Litro de Luz, a luz solar incide na placa fotovoltaica, gerando energia que alimenta a bateria durante o dia. À noite, o circuito utiliza a energia armazenada na bateria para acender a luz LED. Quando amanhece, o dispositivo se apaga automaticamente e o ciclo de alimentação da bateria se reinicia. A ONG também trabalha com uma solução barata de iluminação para ambientes internos que utiliza uma garrafa PET com água e alvejante, criada pelo mecânico e inventor brasileiro Alfredo Moser em 2002, em virtude do racionamento de energia. A ideia se alastrou pelo mundo a partir das Filipinas, dando origem à rede Liter of Light em 2011.
Em 2014, a organização se estabeleceu no Brasil, onde passou a trabalhar em outras soluções, como um lampião solar, que segue os mesmos princípios. “Começamos atendendo comunidades urbanas, mas vimos que seria fundamental expandir para áreas onde a falta de iluminação é um problema sério para a população, como na Amazônia”, diz Leonardo Uematsu, vice-presidente de operações e tecnologia do Litro de Luz.
O lampião solar tem autonomia de 14 horas, e por ser abastecido com a bateria, não traz os mesmos riscos de incêndio que os lampiões a querosene, muito utilizados no interior do País. “É algo simples, mas com um impacto imenso. A iluminação evita ainda acidentes com animais peçonhentos, não traz riscos à saúde pela inalação do gás e permite que as pessoas prolonguem o tempo dedicado aos estudos”, afirma.
Com suas diferentes tecnologias, o Litro de Luz atua em rede, com equipes em seis cidades e 200 voluntários, o que tornou possível a instalação de 2.300 soluções de iluminação. Graças à simplicidade e ao apelo sustentável da tecnologia – o custo de cada item não ultrapassa R$ 1.500 –, Uematsu viu o interesse pelo Litro de Luz aumentar. A ONG hoje vem sendo procurada para parcerias por empresas de diferentes segmentos, do automotivo – caso da Nissan–, até grupos do setor de energia, educação e bebidas.
Geração de renda
Empresas que atuam no setor de energias renováveis como eólica e solar também estão olhando para suas iniciativas de ISP de forma mais estratégica e buscam vinculá-las ao seu negócio central, mas ainda esbarram nas necessidades locais.
A EDP Renováveis, empresa de origem portuguesa e quarto maior produtor de energia eólica do mundo, ao iniciar sua operação no Brasil, realizou um diagnóstico da situação das comunidades rurais vizinhas aos seus três complexos eólicos no Rio Grande do Norte (Baixa do Feijão, Jaú e Aventura). Mesmo localizadas em regiões remotas do sertão nordestino, todas as comunidades têm acesso à energia elétrica, um reflexo de programas governamentais como o Luz para Todos. Por isso, direcionou seu investimento social para as demandas que identificou.
O foco do ISP é a geração de renda para as famílias, por meio do fortalecimento da vocação da agricultura familiar, com ações de fomento ao empreendedorismo e difusão de tecnologias sociais para maior produtividade. O programa, iniciado em 2016 junto à instalação das primeiras turbinas eólicas, já difundiu 13 tecnologias na área de plantio e cuidados com animais, beneficiando 100 famílias na região de João Câmara (RN).
De acordo com Emiliana Fonseca, especialista em meio ambiente da EDP Renováveis, as técnicas empregadas até o momento priorizam sistemas que não consomem energia, como o abastecimento de água por gravidade, sem necessidade de bombeamento, e um sistema de gotejamento para irrigação dos quintais. “Para as próximas edições do programa, estão previstas tecnologias sociais relacionadas à agricultura familiar movidas a energia renovável, como sistemas para segurança hídrica movidos a energia solar”, diz.