Novos modelos de parceria e tecnologias de ponta dão impulso a investimentos na agenda da água e clima
Por Sérgio Adeodato
Em 1,7 mil comunidades rurais do Ceará, sistemas de abastecimento de água construídos com recurso público estariam condenados a virar sucata por falta de manutenção, como é comum no Sertão nordestino, não fosse uma estratégia de gestão que tem permitido contar uma nova história para quem vive o drama da escassez.
Fortalecer o associativismo e o protagonismo social para a garantia das torneiras funcionando é apenas um capítulo da trama, cujas cenas incluem tecnologias de vanguarda que melhoram a qualidade do recurso hídrico e ampliam o atendimento, com menor custo, diante do aumento populacional em localidades que já não dependem dos “coronéis” para lidar com a seca.
O enredo abrange um terço da população rural do Ceará e desde 2016 recebeu investimentos de R$ 1,6 milhão, ilustrando como conciliar o ente público e o privado na questão da água. “Estão em jogo desafios de saúde, redução da pobreza e cidadania”, ressalta Marcondes Ribeiro, diretor do Instituto Sisar, atuante em oito municípios cearenses. A organização é parceira do Instituto Coca-Cola na Aliança Água+ Acesso, iniciativa que foi ampliada em 2018 de três para oito estados, beneficiando atualmente 77 mil pessoas por meio de um arranjo inovador de governança, baseado na união de instituições em busca de soluções duradouras.
No Semiárido do Ceará, as comunidades são mobilizadas para os cuidados com o sistema de abastecimento público em parceria com o governo estadual, com apoio empresarial para inovações no tratamento: dessalinização da água de poços subterrâneos para distribuição na rede e novos processos de filtração, por exemplo.
“A convivência com a seca exige maior diversidade de fontes de abastecimento e o governo sozinho não dá conta, em função de inúmeras questões técnicas e gerenciais”, explica Ribeiro. Nas últimas décadas, a expansão das cisternas para acúmulo de água da chuva na zona rural se somou a outros avanços para mudar a realidade social do sertão. “Transportar água no lombo de jumento ou em baldes na cabeça já não é mais uma cena corriqueira”, aponta o diretor, ao lembrar que um dos efeitos é a redução do êxodo para o meio urbano. Na mais recente seca da região, só 3% dos sistemas de abastecimento beneficiados pelo projeto ficaram sem água e, curiosamente, “vimos um movimento no sentido contrário, de pessoas da cidade indo para zona rural encher os baldes”.
De acordo com levantamento da Unicef, 50% das estruturas hídricas são sucateadas em até cinco anos na zona rural, no Brasil. Ao mesmo tempo, essas áreas reúnem 67% dos 35 milhões de brasileiros sem acesso à água. “Precisamos garantir a sustentabilidade do abastecimento não apenas enquanto o recurso financeiro está sendo doado”, destaca Rodrigo Brito, gerente do Água+ Acesso no Instituto Coca-Cola. Em três anos, a organização investiu R$ 11 milhões, além de recursos adicionais de parceiros, na estratégia de envolver os beneficiários na manutenção dos sistemas hídricos: “queremos impacto positivo relevante, mas que fique de pé”.
No Amazonas, o programa beneficia moradores de unidades de conservação em áreas remotas da floresta, com a instalação de sistemas abastecidos por energia fotovoltaica para a captação e despoluição da água, com investimento superior a R$ 700 mil. A tecnologia Ecolágua, desenvolvida pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), aplica raios ultravioleta (UVB) para o tratamento dos volumes captados dos rios ou poços artesianos, o que aumenta a segurança hídrica. O resultado é o menor risco de doenças, como a diarreia – problema que reflete o paradoxo entre a fartura dos rios da região e a dificuldade de acesso à água limpa em comunidades ribeirinhas, devido principalmente à contaminação por esgoto.
A abordagem conecta a agenda da água à do clima, porque maior renda e melhor qualidade de vida evitam o êxodo e favorecem atividades produtivas tradicionais que valorizam a floresta em pé – e não derrubada por práticas predatórias. O impacto pelas mudanças de uso da terra e florestas é responsável por 46% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa, segundo a plataforma Seeg.
“Pelo contexto climático e importância ao futuro do País, a Amazônia representa hoje uma importante janela ao Investimento Social Privado (ISP), ainda pouco presente na região – em parte porque as pessoas que dirigem as instituições investidoras não estão familiarizadas com a temática”, analisa Virgilio Viana, superintendente geral da Fundação Amazonas Sustentável (FAS), parceira da Coca-Cola no Água+ Acesso.
Criada por meio da constituição de um fundo filantrópico de endowment com R$ 20 milhões do Banco Bradesco e R$ 20 milhões do governo do Amazonas, a instituição promove a melhoria de renda, educação e saúde em 16 reservas ambientais estaduais, beneficiando um total de 40 mil pessoas. Entre os atuais apoiadores estão as Lojas Americanas, com investimento no Jirau da Amazônia – loja virtual de produtos da biodiversidade, comercializados no marketplace do grupo após auxílio da FAS à atividade produtiva e à capacitação dos empreendedores ribeirinhos.
“O investimento social das empresas faz toda a diferença no atual momento, em que as políticas de governo enfraquecem o repasse de recursos públicos e a cooperação internacional”, explica Viana. “As instituições privadas têm o papel de não deixar a agenda da redução da pobreza e desigualdade e do controle do desmatamento se desidratar”.
Na análise de José Marcelo Zacchi, secretário-geral do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), “temos claramente a demanda para expandir a ação da filantropia no Brasil em face da agenda socioambiental, e não é possível pensar o bem-estar coletivo e a superação de desafios públicos sem abarcar o acesso e uso sustentável dos recursos naturais e respostas consistentes aos imperativos da preservação de ecossistemas e da segurança climática”.
Negócios bons para o clima
“A filantropia dá o impulso, mas precisamos de engajamento, escala e sobrevida, combinando novos modelos de investimento e parceria, com ênfase no apoio a negócios que fazem bem ao planeta”, complementa Valmir Ortega, diretor executivo do Conexsus. No propósito de construir redes e pontes no mercado, o instituto mapeou 1040 organizações brasileiras de base comunitária, das quais 70 participaram de um programa de aceleração para a modelagem do negócio, com metas e planos de acesso a crédito e mercado.
No passo seguinte, a plataforma Negócios pela Terra, lançada este ano com recursos do Instituto GPA e outros parceiros, como o Fundo Vale, aproxima produtores da agricultura familiar à ponta final da cadeia produtiva, promovendo facilidade de financiamento e matches com empresas compradoras previamente mapeadas. Lá estão, por exemplo, a Manioca, de Belém, que produz alimentos naturais com ingredientes da Amazônia, e o Clube Orgânico, do Rio de Janeiro – negócio que conecta consumidores e produtores através de clube de assinatura de cestas.
A estratégia parte do princípio de que negócios bons para o clima são cada vez mais necessários para fortalecer a economia de baixo carbono e regenerativa no Brasil e no mundo, o que também implica em acelerar o plantio de árvores. Entre as iniciativas, o projeto Lab SAF, voltado a empreendimentos agroflorestais com efeitos diretos no desafio da água e do clima, demonstra a possibilidade de novos caminhos como a conversão de pastagens para pecuária orgânica e a recuperação de áreas degradadas pela mineração, em parceria com produtores rurais.
Cidades resilientes
Estabelecer conexões entre o rural e o urbano, entre as florestas na Amazônia e a vida cotidiana nas grandes cidades, é um campo que se abre a inovações e investimentos com olhar nas demandas em torno da água e das mudanças climáticas. “Incorporar a abordagem da resiliência é um grande desafio para o capital privado”, enfatiza Anna Romanelli, coordenadora de programas da Fundação Avina. A fundação é parceira do projeto 100 Cidades Resilientes, lançado globalmente em 2013 pela Fundação Rockefeller com o objetivo de destinar US$ 100 milhões ao diagnóstico de demandas socioambientais e planejamento municipal sustentável.
Na América Latina, a iniciativa contempla Buenos Aires, Quito, Cidade do México e Salvador, capital brasileira que começou a desenvolver um plano de resiliência baseado na economia circular e inclusiva, em atenção às desigualdades sociais, com incentivo a negócios em setores prioritários, como a gestão de resíduos e a gastronomia. “Após o mapeamento de soluções, a ideia é buscar diálogo com o ISP para dar novos passos”, explica Romanelli.
Se antes cada qual trabalhava no seu “quadrado”, o momento agora é de buscar sinergia na agenda do desenvolvimento, inclusive entre concorrentes. O propósito é o bem comum: “trazer à dimensão do ‘nosso’ algo construído pelo projeto de um ou outro isoladamente”, arremata Telma Rocha, responsável pelo programa regional de acesso à água da Avina. “Os impactos são maiores quando se compartilha resultados que abrem portas a novos investimentos”, diz.
Não há uma receita pronta. Na complexidade do desafio da água, a solução passa pelo aspecto da infraestrutura, mas também da cultura, dos saberes locais e do empoderamento das comunidades. “A ansiedade de chegar rápido à escala dos milhões, reproduzindo fórmulas sem o envolvimento das pessoas, pode tornar a solução um problema”, adverte Rocha.
O leque da governança local abrange também as vocações produtivas e a renda. “É necessário casar a agenda do clima com a do desenvolvimento econômico dos territórios e, para isso, a expansão de parcerias com o ISP é muito importante”, recomenda Bruna Cerqueira, gerente de relações institucionais do Iclei – Governos Locais pela Sustentabilidade. Ela cita iniciativas apoiadas pela organização que podem representar novos espaços para o investimento privado somar forças, a exemplo do Pacto Global de Prefeitos pelo Clima e Energia, que no Brasil tem 80 signatários com planos de redução de emissões e acesso à energia sustentável. Em paralelo, a União Europeia e a ONU Habitat investem na elaboração de estratégias de baixo carbono em oito cidades brasileiras, como Recife. “Há alta demanda por capacitação dos municípios neste tema para caminharmos mais rápido”, lembra Cerqueira.
A corrida tem ainda o combustível da Aliança de Lideranças em Finanças Climáticas das Cidades, coalizão de mais de 40 organizações criada pela ONU em 2014 para acelerar o investimento em infraestrutura de baixo carbono e resiliente ao clima em cidades, com apoio à elaboração de projetos e ao acesso a recursos.
Mas, para Gustavo Pinheiro, coordenador do portfólio de economia de baixo carbono do Instituto Clima e Sociedade (iCS), o País ainda está atrasado nessa agenda. “O Brasil tem a tradição de se engajar tardiamente nos grandes temas globais e não é diferente quanto ao ISP”, avalia. A organização investe em pesquisas e geração de conhecimento como suporte às transformações necessárias frente ao aquecimento global, basicamente por meio de doadores internacionais, mas vê um caminho ainda longo. Os alertas da ciência não têm se traduzido em investimentos na mitigação e adaptação climática: “não temos a cultura da gestão de riscos e isso se reflete nas ideias da elite brasileira e na filantropia”, destaca Pinheiro.
“A agenda mais importante no curto prazo é, na verdade, do século passado, ou seja, acabar com o desmatamento”, completa. A esperança, segundo ele, está no exemplo de empresas inovadoras, líderes em transformações no horizonte da economia de baixo carbono – área em que o País poderia se diferenciar mundialmente em função da matriz energética limpa. “Devemos acelerar o processo apoiando o empreendedorismo de baixo carbono, e isso deve ser feito agora, porque o tempo de retorno desses investimentos é de 30 anos e o prazo para resultados na mitigação do clima é curto”.
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O ISP como indutor de transformações nas empresas mantenedoras
Em que medida o investimento social das fundações influencia mudanças de cultura e práticas de sustentabilidade nas empresas mantenedoras, ajudando a levar cuidados com a água e o clima ao centro das operações? Dados do Censo Gife 2016 indicam que o alinhamento é mais frequente nos aspectos de comunicação, engajamento com comunidade, diálogo com poder público e sensibilização de colaboradores.
No entanto, segundo a pesquisa, é crescente a parcela de associados que se envolvem com áreas do core business das empresas e com as estratégias de negócios, mesmo observando-se que demandas essenciais a transformações estruturantes no cenário da urgência climática, por exemplo, ainda estejam pouco presentes no radar.
Menos da metade (47%) dos institutos e fundações tem algum grau de envolvimento com as empresas mantenedoras em soluções para o desenvolvimento de negócios, incluindo o controle e mitigação de externalidades. Nas instituições familiares, o índice cai para 5%.
“Nos últimos anos, a aproximação entre as políticas de investimento social empresarial e atuação global das empresas tem sido, positivamente, uma das tônicas do setor”, aponta Gustavo Bernardino, gerente de programas do Gife. O movimento passa pela premissa básica de que a construção de impacto social e ambiental positivo tem naturalmente que olhar o arco completo de ação da empresa, desde as práticas internas até as cadeias de valor. “As relações com a coletividade e a mobilização de recursos para superação de seus problemas são apenas uma parte desse conjunto, no qual as empresas também estão inseridas”.
O horizonte da economia de baixo carbono define o atual momento de transição. “Fazemos avanços graduais, mas claros, na direção de incorporar esses imperativos às estratégias corporativas por meio do desenvolvimento de práticas e métricas”, diz o gerente. Na soma de esforços, “frentes de investimento e responsabilidade social precisam mais que nunca de uma maior aproximação, considerando o sentido contemporâneo de propósito nos negócios.”