Por Allan Foster e Elisa Cardamone
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Produzir com selos socioambientais não é assim tão fácil, principalmente para os agricultores familiares. Entenda como a tecnologia pode aproximá-los do consumidor
Já parou para refletir sobre como os alimentos que você consome chegam até você? Embora não sejam tão reconhecidos na esfera de poder como merecem, os pequenos produtores desempenham papel dos mais relevantes: alimentar o País. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), a agricultura familiar foi responsável, em 2017, por 70% dos alimentos que chegaram à mesa da população. Além de abastecer o mercado interno, controlar a inflação dos alimentos consumidos pelos brasileiros e empregar uma parcela significativa da mão de obra no campo, os pequenos produtores combatem a fome e garantem nossa segurança alimentar.
Apesar de tamanha relevância, os pequenos produtores enfrentam obstáculos para desempenhar suas atividades. Além de sofrer problemas sociais, são bastante negligenciados por esferas públicas e privadas e, por conseguinte, têm dificuldade de se inserir no mercado, seja pela falta de incentivos e recursos financeiros, seja por questões burocráticas.
Muitas vezes a única forma desses produtores disponibilizarem seus produtos ao consumidor final é por meio de atravessadores, cuja política de preços desvaloriza o trabalho e a remuneração do produtor, ao mesmo tempo que encarece o produto final. Essa dinâmica reforça relações injustas entre o campo e a cidade, inviabiliza o desenvolvimento do produtor e dificulta, na ótica do consumidor, o acesso a produtos com preços justos e que levem em conta todos os custos de produção. Assim sendo, o produto exposto na prateleira de um grande supermercado muitas vezes está associado a condições precárias de trabalho e não reflete uma remuneração digna ao produtor.
Ao mesmo tempo, cresce a demanda no Brasil e no mundo por produtos mais saudáveis – tanto para o consumidor como para o produtor – que respeitem as condições de trabalho e o cuidado com o ambiente. Isso acena como uma grande oportunidade de mercado para esses produtores, além de agregar valor à produção. O caminho para acessar esses mercados, no entanto, depende da obtenção de selos socioambientais, como a certificação orgânica. Essa oportunidade é repleta de dificuldades, como veremos nesta reportagem e ao longo desta edição de P22_ON. Uma das formas de driblar os obstáculos está em novos formatos de certificação e adesão a tecnologias como o blockchain, ainda que isso não responda a toda a complexidade do universo da agricultura familiar. Mas, antes, vamos entender como chegamos até aqui.
A Revolução Verde e seus impactos
Com a Revolução Verde, o modo de produção no campo mudou radicalmente. Grande parte dos produtores aderiu à intensa mecanização e amplo uso de agroquímicos, como agrotóxicos e fertilizantes, visando aumentar a produtividade de suas propriedades. Com isso, a prática de cultivo utilizando agrotóxicos tornou-se convencional e predominante no campo.
Os pequenos produtores agrícolas tiveram de se adequar a esse novo modo de produção, uma vez que o uso de agrotóxicos e fertilizantes é entendido pelas instituições financeiras como uma segurança para a colheita. Na visão dessas instituições, os agrotóxicos garantem a produção e, consequentemente, a remuneração do produtor, o que dará segurança de pagamento do financiamento. Assim, caso queira acessar linhas de crédito e obter financiamentos, não raro o produtor precisa declarar que adota tais práticas em sua propriedade, mesmo que isso não reflita a realidade.
Contudo, esse novo modelo agrícola resultou em uma série de impactos ambientais e na saúde humana. Segundo o Dossiê Abrasco, publicado em 2015 pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Fiocruz, entre outros órgãos de pesquisa, o uso intensivo e indiscriminado de agrotóxicos levou à contaminação do solo, da água e até mesmo do leite materno (acesse em goo.gl/numwRA)
A associação de agrotóxicos a doenças neurológicas e hormonais, aliada a dados alarmantes, como o fato de que o Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos e que no País são utilizados agrotóxicos proibidos em outros países, como os da União Europeia, faz com que haja um aumento gradativo da parcela da população que questiona esse modelo produtivo.
Um dos efeitos desse questionamento é o aumento da demanda por produtos que, mesmo inseridos nesse modelo de produção, tenham menor impacto ambiental e social associados. Nesse contexto, as certificações socioambientais buscam responder aos anseios dessa parcela da população ao criar sistemas de garantia de práticas responsáveis do ponto de vista ambiental e social.
Paralelamente, no campo da demanda, a busca por alimentos saudáveis, ou seja, livres de agrotóxicos, e provenientes de sistemas de produção mais sustentáveis como os métodos orgânicos de produção, é uma tendência que se fortalece e consolida mundialmente (saiba mais na reportagem Demanda).
Embora com certo atraso, o mercado brasileiro segue essa tendência. No ano de 2016, o mercado nacional de orgânicos aumentou 20% e teve um faturamento estimado em R$ 3 bilhões. Segundo o Conselho Nacional da Produção Orgânica e Sustentável, esse percentual foi ainda maior que nos anos anteriores (mais na reportagem Oferta I).
A princípio, para o consumidor, as certificações parecem uma boa forma de garantir que os produtos que ele está adquirindo passaram por processos produtivos que tiveram menor impacto ambiental, respeitaram a lei e são, em um certo grau, sustentáveis. Diante desse diferencial, os produtos certificados possuem maior valor agregado, e a certificação passa a ser crucial para o acesso a mercados exigentes, como a Comunidade Europeia.
Ademais, as políticas públicas passam a reconhecer a relevância dos produtos certificados. Para os alimentos orgânicos, por exemplo, surgiram linhas de crédito específicas e um lugar de importância em compras públicas: hoje, as merendas escolares devem ser compostas por alimentos orgânicos certificados.
Apesar de endereçar as questões de produção responsável ambiental e socialmente, as certificações não são tão inclusivas com o pequeno produtor. Para acessar os benefícios do mercado de produtos certificados, o produtor precisa enfrentar uma série de procedimentos burocráticos, além de ser capaz de arcar com altos custos associados ao processo de auditoria (mais na reportagem Certificação).
Para os produtos orgânicos, por exemplo, além dos custos envolvidos, a certificação é adquirida por meio de inspeções e auditorias de certificadoras credenciadas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro).
Segundo estudo de 2018 do Sebrae, há somente 16 mil produtores orgânicos no cadastro do Mapa, dos quais 6.257 possuem certificação, 5.084 estão no cadastro por Sistema Participativo de Garantia (SPG) e 4.692 participam por venda direta com controle social. O número é modesto perto das 90 mil propriedades que utilizam técnicas orgânicas, segundo o Censo Agropecuário de 2006.
Os números indicam que o processo de certificação ainda é pouco inclusivo. Entre as razões para isso, está o fato de que não são consideradas as limitações na estrutura das pequenas propriedades. São feitas exigências muitas vezes inalcançáveis para o agricultor familiar, ignorando o contexto e a realidade de sistemas produtivos específicos como o de populações tradicionais. Mesmo seguindo padrões exigidos pelo selo, esbarram em questões burocráticas.
Saídas possíveis
O método mais comum de certificação é o de auditoria, em que uma instituição especializada atesta, por meio de visitas (geralmente anuais), que a organização atua de forma responsável, sem agredir o ambiente e a sociedade. Esse serviço, no entanto, possui um alto custo.
Mas, para suprir os entraves da tradicional certificação por auditorias, uma alternativa encontrada pelos pequenos produtores é o SPG, mecanismo que envolve formas solidárias de controle social e não conta a participação de uma instituição externa. Surgiu no Brasil a partir de pressões sociais e conquistou reconhecimento pela Lei de Orgânicos.
O sistema funciona a partir de uma rede de produtores que tem como objetivo fiscalizar se as práticas adotadas pelos demais integrantes do grupo respeitam o que é permitido para produção de orgânicos. Recorrentemente, eles visitam as propriedades uns dos outros e checam se estão ou não conforme as regras. O selo adquirido é coletivo, logo, se um produtor não atender às expectativas da norma, todos perdem a certificação.
O SPG foi capaz de transpor o obstáculo dos altos custos do sistema de certificação por auditoria. Contudo, a burocracia exigida para o sistema ainda é significativa. Além disso, o sistema brasileiro, apesar de permitir o uso do selo de produto orgânico, não é reconhecido em outros países.
Uma outra saída, inusitada, é o blockchain. Criada recentemente, essa tecnologia, que está por trás das criptomoedas, é cada vez mais usada em diferentes aplicações de diversos setores. A característica principal da tecnologia emergente é permitir que, por meio de um sistema descentralizado, seja possível rastrear todas as transações realizadas ao longo do processo produtivo (mais sobre blockchain na reportagem Tecnologia).
A nova ferramenta eventualmente se apresenta como alternativa para viabilizar o processo de certificação dos pequenos produtores, uma vez que seus pilares de sustentação se assemelham à lógica do Sistema Participativo de Garantia. Assim como o SPG, o blockchain é um sistema em rede que promove transparência, segurança e socializa a informação por meio da participação ativa dos membros do sistema.
O blockchain pode ser entendido como uma nova tecnologia que envolve conexão e confiança.
Conexão: com objetivo de viabilizar transações entre pessoas, funciona da seguinte forma:
- Uma transação é realizada e armazenada em bloco;
- Um dos participantes, escolhido de forma aleatória, é selecionado para validar o bloco;
- Após validação, a informação do novo bloco é propagada na rede;
- Caso a maioria concorde (51%), o bloco é inserido na rede.
Confiança: o blockchain envolve um banco de dados descentralizado, sem intermediários, imutável, resistente e público. Dessa forma, o blockchain tem como princípio a confiança no sistema como um todo, não no emissor.
Em suma, a tecnologia blockchain é um sistema baseado na colaboração dos usuários, caracterizado por uma experiência coletiva, uma vez que está inserido em um ambiente distribuído da internet. Logo, pode ser entendido como uma forma de automatizar o processo do SPG, visto que ambos têm princípios e bases em comum.
Além disso, o blockchain pode ser um meio ainda mais assertivo do que as certificações convencionais. A certificação por auditoria checa o que já foi feito e, analogicamente, “tira uma foto do momento atual”. Já o blockchain pode ser comparado a um filme, uma vez que registra todo processo ao longo do tempo.
Contudo, vale o questionamento: considerando que os pequenos produtores têm dificuldade de custeio e de estrutura, será que o blockchain tem o potencial de resolver esse problema ou o desafio tecnológico será mais uma barreira para o produtor? (saiba mais na reportagem Oferta II)