Por Pedro Tufic Bouchabki, Felipe Melo e Bruno Sanches
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Conheça aplicações do blockchain na prática, como na Caipira Express, empresa mineira de comércio virtual de alimentos artesanais, e no Walmart, junto com a IBM
Dez anos atrás surgiu despretensiosamente uma lógica capaz de revolucionar os negócios e transformar, de alguma maneira, as interações humanas: o blockchain. Tendo como pilares o acesso democrático de informações e cada indivíduo como parte fundamental do processo, pode-se dizer que esse conceito traz um potencial disruptivo e pode ser aplicado em diferentes meios.
O blockchain assemelha-se a outros dois tipos de tecnologia que estão presentes no dia a dia: a energia elétrica e a internet. Dois economistas – Boyan Jovanovic e Peter Rousseau – utilizaram o termo “tecnologia de uso geral” [general purpose technology – GPT] para comparar a energia elétrica e a internet, duas tecnologias que mudaram as relações humanas, o modo de pensar e as relações de poder. Nesse sentido, algumas características fundamentais do blockchain, como a descentralização do controle e a distribuição de informações, dão mais autonomia e poder aos usuários envolvidos.
O blockchain [em português, cadeia de blocos] é uma lógica de organização, de validação de informações e de transações referentes a moedas, processos ou documentos. Trata-se de uma forma distribuída, na qual as pessoas da rede podem transacionar diretamente entre si, de participante para participante (peer-to-peer). Não existe um terceiro ou um intermediário nesse tipo de transação.
A lógica funciona como um “registro” público, um espaço virtual permanente onde são armazenadas todas as informações entre um grupo de pessoas que compõe esse “lugar”. “As pessoas compartilham informações que estão em um mesmo livro-razão, onde são feitas as transações contábeis”, diz André Salem, especialista em blockchain (acesse entrevista em vídeo nos Drops). Ou seja, todos os integrantes da rede, tais como produtores de bens e serviços, consumidores e certificadores, têm o direito de acessar as mesmas informações.
Cada grupo dentro de um blockchain estabelece previamente como validar a informação que está sendo inserida na rede, e isso será aplicado igualmente a todos – cria-se, portanto, uma lógica de consenso. Uma vez que se dispuseram a participar de determinada rede, concordam com as regras de funcionamento. Além disso, uma outra característica de um blockchain é a segurança do encadeamento das informações.
Como explica o vídeo, o consenso entre elas, que é automático, dado por um algoritmo, valida a transação e gera um bloco. “Esse bloco é a minha transação com a sua, mais a validação de todo mundo. A próxima transação que vai acontecer nessa rede, não necessariamente minha e sua, vai gerar um próximo bloco. E esse bloco carrega as informações do bloco antigo”. Trata-se, portanto, de um mecanismo para adicionar confiança em um “ambiente inseguro”.
O blockchain permite não só transparência nos processos em si, mas também nas informações ali presentes, impossibilitando alteração ou fraude. Outro elemento que dá segurança é o fato de o blockchain trabalhar à base de criptografia (uma linguagem interna de códigos), de forma que todas as informações que entram na rede são traduzidas pela linguagem interna e não conseguem ser lidas por “não membros”.
Para uma tecnologia ser considerada de uso geral, são necessárias três condições, e o blockchain também parece se encaixar nesse aspecto. Primeiramente, a tecnologia deve ter capacidade de melhoria, ou seja, melhorar ao longo do tempo. Outra condição é que seja capaz de inventar e produzir novos produtos, processos ou, até mesmo, novas tecnologias. Por fim, deve se espalhar para diferentes setores da economia.
Na prática
Além das aplicações no setor agrícola, o blockchain já está sendo utilizado ao redor do mundo em vários outros campos: no transporte, no sistema bancário, em eleições, na distribuição de energia e até mesmo na música. E também no Brasil. Um exemplo é a empresa Caipira Express. Esse comércio virtual de alimentos artesanais em Araxá (MG) utiliza blockchain para a certificação e verificação da procedência de queijos, rastreando toda a cadeia de produção e distribuição. O consumidor consegue, assim, entrar no site da empresa e informar a identificação do queijo adquirido para ter acesso a informações, como detalhes sobre sua matéria-prima, local de fabricação e os responsáveis por sua produção e revenda.
Outra organização que utiliza o blockchain para garantir a qualidade de um produto a partir do acompanhamento de toda a cadeia de produção dele é o Walmart, conjuntamente com a IBM. André Salem cita como exemplo o consumo de espinafre e explica como se daria esse processo: o espinafre chega na gôndola do supermercado com um QR Code e, quando o consumidor quiser informações sobre toda a cadeia de produção do insumo, basta ligar a câmera do celular em direção ao código inserido no produto.
O blockchain poderia ser aplicado tanto em um Sistema Participativo de Garantia (SPG) quanto em uma certificação por auditoria, diferenciando-se apenas em suas regras de consenso, sendo uma certificação por auditoria mais centralizada em sua forma de validação, se comparada a um SPG (mais sobre o assunto na reportagem Certificação).
Em um modelo de certificação por auditoria – individual ou coletivo – um agente externo é responsável por certificar certas características de uma ou mais produções ou até mesmo por lotes de determinado produto. Esse auditor pode agir sem ou com fins lucrativos, mas o que importa é que a regra de consenso está concentrada nele. Ainda há o caso em que um grupo de produtores é responsável por se autocertificar através de um sistema de controle em que eles próprios arcam com os custos.
Já em um modelo de SPG, produtores próximos se organizam em grupos e realizam visitas técnicas nas terras dos próprios integrantes do sistema a fim de “certificarem” suas práticas agrícolas. Sendo assim, esse tipo de modelo é naturalmente mais distribuído na sua regra de consenso, e o uso do blockchain se torna mais fácil e factível.
Questionada sobre as dificuldades no processo de certificação em um SPG, Roseilda Lima Duarte (Rose), agricultora familiar e membro da Cooperapas Agricultura Orgânica, localizada em Parelheiros, na Zona Sul da capital paulista, afirma: “Assim como muitos produtores, eu tenho dificuldade em mexer no computador. A gente tem muito relatório para preencher. Além disso, meu sinal de internet aqui não é bom”.
“A comunicação, de fato, ainda é um problema. Se você passar em uma casa na Zona Rural e vir uma pessoa em cima da casa, não pense que ele está arrumando o telhado, não, ele está procurando sinal para tentar se comunicar”, diz Vilson Câmara, produtor orgânico de Ilhéus (BA).
Mas vamos imaginar que os pequenos produtores agrícolas utilizem o blockchain. Eles poderiam ter um aplicativo em seu celular com um modelo de relatório de certificação pronto, no qual registrariam o que está ou não sendo feito, além de escrever pontuais observações e salvariam o arquivo no próprio aparelho. Tal processo não precisaria ser inteiramente on-line: quando um produtor chegasse em um local com internet, poderia descarregar o arquivo na rede de blockchain.
Todos os membros da Cooperapas, por exemplo, que emitem certificação orgânica por meio do modelo de SPG, poderiam se beneficiar do uso do blockchain. Com o desenvolvimento de um aplicativo e o uso da rede, não seria preciso mais armazenar todos os seus documentos e relatórios em casa ou em algum local físico como hoje fazem. Um outro agricultor de outro grupo da Cooperapas poderia ter acesso instantâneo a uma certificação feita momentos antes pelo grupo de Rose. Por outra perspectiva, um consumidor que faz parte da rede conseguiria identificar a origem de um produto mais facilmente; ou então, a rota dos produtos poderia ser alocada de forma mais eficiente.
Nesse sentido, os dois modelos podem ser benéficos em diversos aspectos. Além de oferecer mais transparência a todos os membros da rede, ambos permitem reduzir custos operacionais, obter mais credibilidade com demais agentes e incluir atores menores, como pequenos produtores.
O blockchain, que se mostra como uma tecnologia globalmente revolucionária, também impacta em nível local, podendo trazer uma série de benefícios a diferentes setores da sociedade. Mas, para além dos aspectos técnicos, a introdução do blockchain no ambiente da pequena produção pode trazer outros desdobramentos que não devem ser negligenciados.
Como afirma o sociólogo no livro Paisagens Pós-Urbanas, “a introdução de um novo médium em uma cultura muda o ‘equilíbrio sensorial’ e, consequentemente, as formas e as práticas das interações”. Trata-se de uma referência à ideia de Marshall Mcluhan de que “o meio é a mensagem”. E um aviso de que a introdução de novas tecnologias deve ser pensada também em termos da cultura (mais sobre o assunto na reportagem Oferta II).