Empresas do agronegócio apostam em programas para fortalecer os atributos de sustentabilidade de produtores rurais
Por Amália Safatle
Dependente de água na medida certa, solo fértil, clima equilibrado, biodiversidade e polinização, o setor agrícola é intimamente ligado aos bens e serviços ofertados pela natureza. Nada mais óbvio, portanto, do que conservar a base de sustentação do capital natural, se os produtores quiserem manter rentáveis suas atividades ao longo do tempo.
Embora esse pensamento não esteja assimilado em todo setor ruralista, no qual ainda persistem práticas de produção que dilapidam o capital natural, algumas iniciativas inovadoras, com atributos de sustentabilidade, são dignas de nota. A Cargill e a Basf, por exemplo, foram selecionadas na chamada de casos “Gestão Empresarial do Capital Natural” ao apresentar projetos capazes de disseminar essas práticas, com potencial para inspirar outros players do setor e atores de suas cadeias produtivas.
Enquanto a Basf transmite a seus clientes conhecimento e técnicas para restauração florestal e presta serviços de educação ambiental nas regiões onde atua, a Cargill incentiva os produtores a adotar em suas propriedades um programa de certificação mais acessível, buscando o controle do desmatamento, o bem-estar do trabalhador e o gerenciamento das emissões de carbono.
O leitor pode perguntar-se quão consistentes são esses projetos partindo de duas multinacionais do agronegócio – a Basf, uma fabricante de agrotóxicos, e a Cargill, conhecida pelo comércio de soja, cujo cultivo pode ser visto como ameaça para biomas como o Cerrado e a Floresta Amazônica. Haveria contradição entre as propostas selecionadas e a atividade-fim das empresas?
“Sem uma boa gestão ecológica de sua propriedade, que prevê manejo de fauna e flora, conservação da mata ciliar e aplicação exata do produto, o produtor perde produtividade”, responde Emiliano Graziano da Silva, gerente de Sustentabilidade da Basf para a América do Sul. “E, sem o uso correto de defensivos, não se obtém uma produção agrícola com eficiência e competitividade.”
Para Renata Nogueira, gerente de Sustentabilidade da Cargill, existe interesse por parte da empresa que os produtores da cadeia da soja adotem as melhores práticas, inclusive para atender a demanda de consumidores europeus, que pedem produtos certificados. Além disso, ao assinar o compromisso New York Declaration on Forests, em 2014, a empresa comprometeu-se a acabar com o desmatamento em todas as suas cadeias de suprimentos agrícolas do mundo até 2030.
A New York Declaration é uma declaração internacional voluntária para deter o desmatamento global. Foi endossada pela primeira vez na Cúpula do Clima das Nações Unidas, em setembro de 2014. Possui 191 signatários, sendo 40 governos, 20 governos subnacionais, 57 empresas multinacionais, 16 grupos representantes de comunidades indígenas e 58 organizações não governamentais. Conheça seus 10 objetivos.
“Não é só vender produto e ponto”
Por meio do Programa de Restauração e Educação Ambiental Mata Viva, caso da Basf que foi selecionado, os clientes que atingem um determinado volume compras podem contar, entre outros serviços, com orientação para restaurar a Área de Preservação Permanente (APP) em suas propriedades rurais. (Outros serviços prestados aos clientes mais fiéis da empresa são gestão da propriedade, análise do solo e de lixiviação etc.
Com investimento aproximado R$ 7 milhões até o momento, o Mata Viva surgiu há 32 anos, com a finalidade de recuperar as matas ciliares na área da fábrica da Basf em Guaratinguetá (SP), às margens do Rio Paraíba do Sul, até então ocupada por pastagens. Com o sucesso da empreitada, que recuperou a biodiversidade local, protegeu o solo e o corpo hídrico naquele trecho, a empresa decidiu em 2008 oferecer esse serviço a seus clientes, que precisavam se adequar ao Novo Código Florestal.
O Novo Código Florestal, aprovado em 2012 pela Lei nº 12.651, atualizou a legislação vigente desde 1965. Propõe um zoneamento da propriedade rural – área agrícola, Áreas de Preservação Permanente (APP) e Reserva Legal – com normas específicas para uso e ocupação do solo. Também prevê mecanismos financeiros que vão além do comando e controle, como restrição de crédito aos produtores que não se enquadrarem. “O boom de adesão ao programa ocorreu mais no início, para adequação ao Código, mas ainda hoje há clientes que se interessam”, conta Graziano.
Até o momento, o programa atendeu 27 clientes, entre cooperativas e empresas agrícolas, em 153 municípios de 9 estados brasileiros, e restaurou cerca de 702 hectares com o plantio de 1,12 milhão de mudas de árvores nas margens de nascentes e de corpos d’água.
Mas o que isso traz de benefícios à Basf? Como grande parte da produção da safra no País depende de financiamento, e o cumprimento das leis ambientais é etapa imprescindível para conquistar certificações capazes de proporcionar diferenciais competitivos para comercialização de produtos agrícolas, a regularização ambiental da propriedade rural é vista pela empresa como um passo essencial para assegurar a produção agrícola – o que impacta diretamente seus negócios ligados à comercialização de seus produtos.
Além disso, a Basf afirma que a atividade agrícola está associada de forma indelével a boas práticas agrícolas e à conservação dos recursos naturais. Segundo a empresa, água e solo são “insumos” imprescindíveis para garantir a sustentabilidade e perenidade da atividade agrícola; com isso, a proteção das nascentes e dos demais corpos d’água são estratégicos para manutenção e recuperação desse capital natural.
Questionado se, ao contribuir para recuperar matas nativas – que naturalmente auxiliam no controle biológico –, isso reduziria as vendas de produtos químicos pela empresa, Graziano respondeu que não há contradição entre uma coisa e outra: “Nosso slogan é ‘criamos química para um futuro sustentável’. Estamos investindo para reduzir ao máximo o uso de defensivo agrícola, porque ele não é a razão de existir da Basf”, afirma. Como exemplo, cita o investimento nos últimos anos em programas de start up, em que se destaca a aplicação por meio de drone. Segundo Graziano, essa tecnologia confere maior precisão, demandando uma quantidade reduzida de defensivo de forma localizada, que chega apenas às plantas doentes.
“Quero perenidade, e não quantidade. Quero estar do lado do fazendeiro para ele ser competitivo e sustentável. Ao atingir níveis de excelência, o produtor usará melhor a tecnologia que tenho disponível para oferecer. Não é só vender produto e ponto-final, acaba-se a relação”, argumenta.
Uma porta de entrada mais acessível
A busca de melhoramento contínuo da propriedade rural também é um dos objetivos perseguidos pela Cargill, ao lançar o programa Soluções para Suprimentos Sustentáveis – Programa 3S. Trata-se de um programa mais acessível para o produtor rural, que, muitas vezes, tem dificuldade em cumprir sistemas mais sofisticados usados para a certificação da soja. Ao oferecer um sistema mais simplificado, a Cargill espera que o programa seja capaz de mudar a cadeia produtiva da soja, tornando-a cada vez mais sustentável.
Segundo a empresa, o intuito é gerar benefícios a todos os envolvidos na cadeia de produção de soja, garantindo ao consumidor que o produto adquirido está livre de desmatamento e cumpre requisitos de boas práticas agrícolas, bem-estar do trabalhador rural, possui rastreabilidade e gerencia suas emissões de carbono. Um produto com selo 3S – o óleo de soja Liza Origens – está disponível desde março para o consumidor final em alguns supermercados brasileiros.
O trunfo da iniciativa, que apresenta um caráter estruturante, ou seja, não é pontual, é seu alto potencial de replicação, inclusive para outros cultivos, como milho, legumes, frutas. Mas importantes desafios ainda são encontrados, conta Renata Nogueira. O principal deles é engajar o produtor rural que não percebe, de imediato, quais são os benefícios de obter o selo. “Isso porque, embora o comprador internacional esteja interessando em produtos com atributos de sustentabilidade, ainda não se mostra disposto a pagar mais por isso”, afirma a gerente.
Dessa forma, os esforços para a implantação do selo têm sido totalmente cobertos pela Cargill, que investe R$ 250 mil por ano no programa. A implementação do 3S dá-se em quatro etapas: sensibilização dos produtores, diagnóstico da propriedade, elaboração de um plano de ação individual e ações de melhoramento contínuo.
Segundo a empresa, ainda que os produtores percebam que o 3S contribui para a melhor gestão da propriedade e a deixa mais fortalecida por meio de atributos da sustentabilidade, é preciso que os clientes reconheçam valor na iniciativa, de modo a permitir o retorno desses investimentos aos produtores. Caso contrário, o programa não se sustentará sozinho.
Há 7 anos investindo no 3S, a Cargill obteve até o momento a adesão de 200 produtores em Goiás, Paraná, Mato Grosso e Pará somando 152 mil hectares – de um total de 6 mil produtores de sua cadeia de valor. Para isso, contou com parcerias: a assistência técnica é prestada pelo Instituto BioSistêmico (IBS), e as emissões de carbono das propriedades são calculadas pela Fundação Espaço Eco, pertencente à Basf.
Para expandir o programa – na safra 18/19, a meta é chegar ao Mato Grosso do Sul –, a empresa aposta em novos parceiros, como instituições financeiras e empresas que vendem insumos agrícolas. Transformar a cadeia de soja no Brasil é uma tarefa que exigirá engajamento dos mais diversos atores.
Raio X das propostas
Soluções para Suprimentos Sustentáveis – Programa 3S
Proponente: Cargill – empresa privada de grande porte do setor agrícola
Data de início: 2010
Data de término: não aplicável
Local da iniciativa: Brasil
Investimento aproximado: R$ 250 mil/ano
Como gera valor para a empresa:
A iniciativa atende o objetivo de promover uma produção que respeite as pessoas, o meio ambiente e garanta alimentos saudáveis ao redor do mundo, uma vez que a Cargill deseja ser reconhecida como fonte confiável de produtos e serviços com atributos sustentáveis. O Programa 3S pretende gerar benefícios a todos os envolvidos na cadeia de produção de soja. Para o consumidor, atesta que o produto adquirido é livre de desmatamento e cumpre requisitos de boas práticas agrícolas, bem-estar do trabalhador rural, é rastreável e tem suas emissões de gases de efeito estufa geridas, atendendo às principais demandas do mercado por produtos certificados.
Como gera valor para o ecossistema e atores envolvidos:
Por meio do programa, a empresa entende que será capaz de transformar a cadeia produtiva da soja e torná-la cada vez menos impactante, com controle do desmatamento, bem-estar do trabalhador e incentivo às boas práticas agrícolas. São monitorados até o momento mais de 152 mil hectares de produção de soja distribuídos em 165 propriedades. Com o projeto, houve incremento nos índices do programa para três temas gerais da sustentabilidade (ambiental, social e produtivo), passando de 43,60% para 51,37% no ambiental, 47,48% para 52,56% no social e 49,48% para 54,81% no produtivo. O melhoramento ambiental das propriedades inclui manejo correto do solo e da água, uso de agrotóxicos de menor toxicidade, e cuidados com descarte do lixo, geração de resíduos e poluição ambiental.
Como se relaciona com outras iniciativas globais:
A empresa assumiu o compromisso de acabar com o desmatamento em todas as cadeias de suprimentos agrícolas do mundo até 2030, ao assinar a New York Declaration for Forest em 2014. O programa também está alinhado com o guideline de sustentabilidade da European Feed Manufactor’s Federation (Fefac) e com a RED, normativa europeia para biocombustíveis.
Programa de Restauração e Educação Ambiental Mata Viva
Proponente: Basf – empresa privada de grande porte do setor químico
Data de início: 1984
Data de término: não aplicável
Local da iniciativa: Brasil
Investimento aproximado: R$ 7 milhões
Como gera valor para a empresa:
O programa contribui para o desenvolvimento sustentável na cadeia do agronegócio ao proporcionar adequação dos clientes (produtores rurais) ao Código Florestal, ganho de reputação e imagem, publicações espontâneas na mídia, boas relações comerciais e de parcerias. Por meio da iniciativa, a empresa aprimora o relacionamento com órgãos públicos, obtém reconhecimento do público em geral – o que permite licença social para operar –, dissemina o conceito do desenvolvimento sustentável para diferentes públicos.
Como gera valor para o ecossistema e atores envolvidos:
Até o momento, o Programa Mata Viva restaurou 702 hectares com o plantio de mais de 1,12 milhão de mudas de árvores nativas. Com isso, promoveu melhoria nos serviços ecossistêmicos por atuar na proteção dos corpos d’água, solo e biodiversidade. Nas ações de restauração florestal, é utilizado o maior número de espécies nativas possível, visando o restabelecimento da biodiversidade. Foram feitos levantamentos para conhecer a diversidade de espécies de aves e abelhas existentes em áreas restauradas pelo programa e constatou-se expressivo número de ambos os grupos.
A empresa exige contrapartidas do produtor rural que participa do programa, tais como apoiar e realizar pequenas intervenções nos plantios de mudas conforme orientação do time da Fundação Espaço Eco. Isso traz o comprometimento do participante para que as ações de restauração venham a ter sucesso. Além disso, para um cliente ingressar no programa, são feitas reuniões para sensibilização sobre a importância do comprometimento de todos os atores envolvidos.
Como se relaciona com outras iniciativas globais:
O Programa Mata Viva é relacionado com alguns Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, com destaque para o 13 (Tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos) e 15 (Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade).