Empresas encontram soluções para a atual insegurança hídrica na conservação e no restauro da paisagem natural
Por Magali Cabral
Todas as empresas usam água em seus processos e cadeias produtivas. Algumas mais, outras menos. Só mesmo gestores muito desatentos não enxergariam o risco de escassez hídrica que já se instalou nitidamente em algumas regiões do País. A conservação e recuperação de florestas têm se apresentado como uma solução tão interessante para a redução do risco hídrico empresarial que duas das empresas selecionadas na chamada de casos Gestão Empresarial de Capital Natural apresentaram ações nesse sentido.
São elas a Sabesp – empresa de capital misto que abastece 368 municípios paulistas na distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto – com o caso “Programa Cinturão Verde dos Mananciais Metropolitanos”; e a Nespresso, unidade de negócios em café dentro da multinacional suíça Nestlé, com o programa “Consórcio Cerrado das Águas”.
Durante a maior crise hídrica de São Paulo, que se estendeu de dezembro de 2014 a início de 2016, a Sabesp recebeu críticas de vários lados, não apenas pela forma como vinha gerindo a empresa, mas também por uma suposta falta de posicionamento sobre as questões ambientais relacionadas ao desabastecimento. A resposta às críticas veio em 2017 no livro digital Muito Além da Água. O propósito da publicação foi comunicar ao público a existência do programa Cinturão Verde dos Mananciais, que abrange as regiões dos sistemas de abastecimento Cantareira, Alto Cotia, Rio Claro e Fazenda Capivari, na Região Metropolitana de São Paulo.
Na apresentação, o presidente da Sabesp, Jerson Kelman, admite que a grave crise hídrica que se abateu sobre São Paulo na ocasião deixou evidente a importância da gestão eficiente e sustentável dos recursos naturais na prevenção de futuras adversidades climáticas. “Recuperar e preservar os recursos naturais nas regiões do cinturão verde, mais do que uma obrigação, é uma diretriz estratégica para garantir a entrega de água aos mais de 28 milhões de consumidores”, registrou.
De certo modo, a Nespresso segue uma estratégia semelhante com o programa Consórcio Cerrado das Águas. Conforme explica o especialista em café verde da empresa, Guilherme Amado, a missão do programa é garantir o futuro dos cafés. “No Cerrado mineiro [região do Triângulo Mineiro], se analisarmos os índices de chuva nos últimos 10 anos, veremos que em sete deles as precipitações ficaram abaixo da média histórica. Isso é muito impactante em uma região de temperaturas altas com uma produção de café tão dependente da água [cerca de 60% da cafeicultura do Cerrado utiliza irrigação].”
Em 2015, a mesma seca que fez “evaporar” a água dos sistemas de abastecimento da Sabesp, também atingiu em cheio os produtores dos mais premiados cafés brasileiros. Na época, os produtores de café foram obrigados a cessar a captação de água sob pena de terem seus equipamentos de irrigação embargados pelo estado. “Essa interrupção do ciclo da planta [com a suspensão da irrigação] acarreta menos produtividade e menos qualidade”, observa Amado.
Pó pô o pó?
O café é uma planta exigente. Para produzir um grão com qualidade premium é necessário um volume de água constante, muito bem distribuído, que varie de 1.200 a 1.500 milímetros ao ano. Embora tenha um clima ótimo para o café, o Cerrado é um bioma delicado e já maltratado nas regiões de alta produção agrícola. A situação não é diferente em Patrocínio, no Triângulo Mineiro, onde a Nespresso tem seus grandes fornecedores. “Chuvas fortes e rápidas são cada vez mais frequentes e, quando caem sobre um solo compactado, provocam lixiviação de fertilizantes e agroquímicos, impactam na produção, na produtividade e na qualidade do produto final”, explica o especialista em café verde da Nespresso, Guilherme Amado.
Segundo seu relato, em muitas das áreas agrícolas de Patrocínio, não se vê mais nenhuma árvore. A ocupação agrícola massiva no Triângulo Mineiro teve início nos anos 1970, depois que sucessivas geadas dizimaram a cafeicultura do Paraná. Muitos agricultores migraram para a região, onde o clima era bom e as terras não tão caras, mas nem todos foram cuidadosos com o ecossistema ao formar suas lavouras. “Isso impactou o clima e hoje todos estão pagando um alto preço”, diz o especialista.
Somem-se a essa situação os dados de dois estudos climáticos referentes à agricultura: o primeiro feito pela Embrapa em 2004, e o outro, pela Universidade de Vermont (Nova Inglaterra, EUA), em 2018. Modelagens de cenários para as grandes regiões agrícolas do mundo apontam que, se a temperatura média do planeta subir 4 graus nos próximos 100 anos, pelo menos 90% das lavouras atuais não serão mais viáveis. “Isso nos preocupa demais, pois o Cerrado mineiro está incluído nesses estudos e é desta região que compramos enorme quantidade de café. Os riscos são crescentes e, portanto, faz todo o sentido colocar em prática projetos para endereçar esse tipo de desafio”, afirma ele.
Em 2015, depois de Patrocínio e região terem amargado um veranico prolongado, com mais de 30 dias sem chuvas e temperaturas acima de 35 graus, o que atingiu severamente a quantidade e a qualidade dos cafés, a Nespresso apoiou, ainda sob o impacto da quebra da safra, a formalização do Consórcio Cerrado das Águas. Trata-se de uma plataforma multissetorial colaborativa, cujo objetivo é criar “paisagens produtivas sustentáveis” em uma área-piloto, abrangendo a bacia do Córrego Feio, em Patrocínio. O modelo prevê que todos os agricultores, a montante ou a jusante, implementem boas práticas de produção e de conservação, a fim de garantir um uso sustentável do capital natural local.
O projeto vem com três eixos de atuação: o de paisagens sustentáveis, o de cadeias produtivas e o de capacitação. No eixo de atuação de paisagens sustentáveis, a estratégia é restaurar ambientes naturais para garantir a provisão dos serviços ecossistêmicos. No eixo referente a cadeias produtivas, o Consórcio visa aumentar os níveis de competitividade por meio do fortalecimento da identidade regional e da adoção de processos de produção sustentável. O terceiro eixo trabalha a capacitação por meio do compartilhamento de informações e de conhecimento, além de treinamentos em práticas produtivas sustentáveis.
Esse conceito de “abordagem por paisagem” foi resultado de uma cocriação que incluiu a sociedade civil, representantes dos produtores, empresas, certificadoras de café, órgãos governamentais (Departamento de Águas e Energia Elétrica – DAEE e o Instituto Estadual de Florestas – IEF), além da universidade local, o Centro Universitário do Cerrado (Unicerp).
O método para monitorar riscos e oportunidades de serviços ecossistêmicos relacionados a fazendas de café veio da parceria da Nespresso com a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) e, posteriormente, com o Instituto Ipê, encarregado de avaliar indicadores técnicos e ambientais. “Em reuniões com todas as partes interessadas, construímos a visão comum de que a água é fruto da paisagem que construímos”, afirma Amado.
O grande foco das ações está na conservação e no uso racional da água, o que envolve ações de curto prazo (qualidade dos sistemas de irrigação, captação de águas de chuva e manejo de cultivos de cobertura) e de longo prazo (reflorestamento, isolamento, enriquecimento e regeneração natural para os fragmentos de vegetação nativa). O financiamento do projeto, que envolve 125 propriedades, está sendo feito com verbas da Nespresso e do Critical Ecosystem Partnership Fund, cuja captação foi feita pelo Imaflora. O fundo liberou US$ 200 mil para fazer a implementação de parte do plano de ação e todo o diagnóstico.
Enquanto isso, o Consórcio Cerrado das Águas planeja também colocar em prática um mecanismo financeiro de pagamento por serviços ambientais (PSA). No momento a Nespresso está contratando a consultoria para fazer a valoração do serviço. “Quando tivermos esse valor, buscaremos as fontes financiadoras. Mas a ideia é não criar nenhuma expectativa, pois sempre deixamos bem claro aos produtores que eles têm de andar por si só.”
Água de beber
Sem computar o espelho d’água das represas, a Sabesp possui cerca de 35 mil hectares em Unidades de Conservação (UC), protegendo os mananciais de seus quatro grandes sistemas de abastecimento. Juntas, as áreas representam 1,4% do remanescente da Mata Atlântica do estado de São Paulo. Essas propriedades foram adquiridas ao longo das décadas de 1970 e 1980 para a construção dos reservatórios e, segundo a gerente de Recursos Hídricos, Mara Ramos, estão 75% cobertas com vegetação nativa de Mata Atlântica. Os 25% de áreas ainda descobertas estão dentro do sistema de proteção dos mananciais do Sistema Cantareira, onde no passado havia uma fazenda de gado.
Ela explica que o programa Cinturão Verde dos Mananciais está baseado em três vertentes: proteger as áreas do entorno das reservas dos quatro mananciais, aumentar a cobertura vegetal do Cantareira e fazer a manutenção de viveiros de mudas para subsidiar esse reflorestamento. “Na primeira ação, estamos falando em conservar 35 mil hectares de florestas. É preciso monitorar e fiscalizar para evitar eventuais ocupações. Na segunda ação, nossa meta é ampliar de 75% para 78% a cobertura vegetal na unidade do Sistema Cantareira até 2020”, afirma.
Entre as mais de uma centena de espécies de árvores produzidas nos viveiros da Sabesp, exemplares de angico-branco, ingá-do-brejo, tamboril, peroba-rosa e cedro-rosa deverão estar entre as 350 mil mudas a serem plantadas nos próximos dois anos.
Em 30 anos, a cobertura vegetal no Sistema Cantareira passou de 61% para 75% – foram reflorestados mais de 200 hectares. Os 25% de áreas descobertas remanescentes representam hoje cerca de 1,5 mil hectares. Entre 2007 e 2010, foram plantadas 1,4 milhão de árvores em parceria com as organizações The Nature Conservancy (TNC), o Instituto de Pesquisas Ecológicas (Ipê), e com a empresa pública paulista Desenvolvimento Rodoviário S.A. (Dersa). Este ano, os viveiros passaram a ser administrados pela Associação Mata Ciliar, que promete trazer mais agilidade aos projetos de restauração e expandir seu raio de atuação por meio de parcerias com prefeituras e outras instituições locais.
Essa iniciativa não é uma ação meramente ambientalista. A água é o core business da empresa e, ao cuidá-la, a Sabesp gera valor para si própria, aumentando a segurança hídrica e a qualidade da água a ser tratada. Os cinturões verdes dificultam o surgimento de ocupações irregulares, impedem que lixo, pesticidas e agrotóxicos sejam arrastados para dentro das represas, reduzem o risco de enchentes, protegem a biodiversidade e melhoram a qualidade da água.
Segundo dados da própria Sabesp, o Índice de Qualidade das Águas (IQA) da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) para as águas do Sistema Cantareira apresentava valor 70 (em uma escala de 0 a 100) no ano 2000, indicando “boa qualidade”. Durante o período de 2010 a 2017, com o aumento da cobertura vegetal no entorno da represa, o índice subiu 10 pontos, passando a apresentar “ótima qualidade”, de acordo com Mara Ramos.
No Brasil, tem sido comum a sustentabilidade ganhar força somente quando os riscos aos negócios já se tornaram presentes. Embora a expectativa dos efeitos da mudança do clima esteja nos estudos científicos e nos noticiários há mais de uma década, para muita gente ainda é preciso ver para crer. O ano de 2015 acendeu a luz amarela (ou vermelha, para alguns) dos efeitos das adversidades climáticas, e levou as empresas, principalmente aquelas muito dependente de recursos hídricos, a pensar mais seriamente em suas relações com os ecossistemas. Foi o ano em que a natureza “falou” aos que sabem ouvir: “Precisa de mim? Então me ajuda a te ajudar”.
Raio X das propostas
Programa Cinturão Verde dos Mananciais Metropolitanos
Proponente: Sabesp – empresa pública de grande porte do setor de saneamento
Data de início: 2017
Data de término: 2018
Local de realização da iniciativa: Região Metropolitana de São Paulo
Investimento aproximado: valor ecossistêmico a calcular
Como gera valor para a empresa:
Os resultados da iniciativa podem ser mensurados pelo Índice de Qualidade das Águas (IQA) da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). Em 2000, para as águas do Sistema Cantareira, esse índice apresentava valor 70, indicando “boa” qualidade da água. Em seguida, durante o período de 2010 a 2017, o índice subiu 10 pontos, e as águas do Cantareira apresentaram qualidade “ótima”.
Como gera valor para o ecossistema e atores envolvidos:
O plantio e a manutenção das florestas dificulta ocupações irregulares, impede que lixo, pesticidas e agrotóxicos sejam arrastados para dentro das represas, reduz o risco de enchentes, protege a biodiversidade, contribuindo para garantir a segurança hídrica para mais de 20 milhões de pessoas na Região Metropolitana de São Paulo.
Como se relaciona com outras iniciativas globais:
Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos é o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6 (Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos) e uma das prioridades incluídas na política ambiental da empresa e nas ações estabelecidas de seu planejamento estratégico. Nesse contexto, está inserida a ação de restauração florestal no entorno dos Mananciais Urbanos: o Programa Cinturão Verde dos Mananciais Metropolitanos.
Consórcio Cerrado das Águas
Proponente: Nestlé – empresa privada de grande porte do setor de alimentos
Data de início: 2015
Data de término: não aplicável
Local da iniciativa: Bacia do Córrego Feio – Patrocínio (MG)
Investimento aproximado: não aplicável
Como gera valor para a empresa:
O tema da água é considerado central para produção de café na região do Cerrado Mineiro, hoje e no futuro. O projeto, que tem por objetivo criar paisagens produtivas e sustentáveis, consolida a visão de criação compartilhada da Nestlé, por meio do fortalecimento da cadeia de fornecimento de café. A maior resiliência climática contribui para o fornecimento futuro de cafés em quantidade e qualidade, atendendo à necessidade da empresa.
Como gera valor para o ecossistema e atores envolvidos:
Por meio do Consórcio Cerrado das Águas, todos os produtores participantes implementam boas práticas de produção e de conservação, de forma a garantir um uso sustentável do capital natural local. O foco na água se multiplica em ações como bom sistema de irrigação, captação de águas de chuva e manejo de cultivos de cobertura, assim como ações de reflorestamento, isolamento, enriquecimento e regeneração natural para os fragmentos de vegetação nativa. Com isso, aliam-se conceitos, tecnologia, treinamento e engajamento dos atores envolvidos para o sucesso do projeto.
Como se relaciona com outras iniciativas globais:
A iniciativa está vinculada com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, mais especificamente o 6 (Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos), 15 (Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade) e 17 (Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável); com o Protocolo de Capital Natural e com compromissos assumidos na COP21. Também está alinhado com o Manifesto do Cerrado, do qual a Nestlé é signatária.