Por Amália Safatle
A expressão “moda sustentável” está na moda e vem sendo propagada a torto e a direito. Dizem, por exemplo, que uma camiseta de algodão é mais sustentável que a de poliéster. Será mesmo?
Um olhar mais cuidadoso levanta uma série de pontos e mostra que não há resposta simples para questões complexas. Quais critérios estamos levando em conta? Que medidas devem usadas para aferir o grau de sustentabilidade de um determinado produto ou processo? Como isso pode ser comprovado?
Nada como um pouco de fundamentação teórica para lidar com os modismos. Vamos começar com o Pensamento de Ciclo de Vida, um conceito que ajuda as pessoas a pensar de forma mais sistêmica sobre os impactos que cada produto gera, desde a extração da matéria-prima até o descarte, passando pela produção e pela sua utilização pelo consumidor.
Voltando à questão da camiseta – qual das duas é mais sustentável? –, o Pensamento de Ciclo de Vida nos levaria a responder: “Depende…”
O fato de o algodão ser uma fibra natural e, portanto, renovável, enquanto o poliéster provém do petróleo, não é suficiente para concluir que a primeira é menos impactante que a segunda. Isso porque muitas outras variáveis entram nessa equação, como explica Ricardo Dinato, pesquisador do Ciclo de Vida Aplicado (CiViA), uma iniciativa do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-Eaesp (assista a videoaula aqui).
Segundo Dinato, a avaliação do impacto depende do aspecto que será levado em conta. Estamos falando da geração de resíduos do produto descartado? Do consumo de água na obtenção da matéria-prima? Do gasto de energia na produção da camiseta? Do uso de agrotóxicos no cultivo do algodão convencional? Da finitude dos recursos naturais utilizados? Da emissão de carbono? Sob o aspecto do consumo de água, a camiseta de poliéster pode ser mais vantajosa. Já considerando a extração de recursos naturais, a de algodão ganha.
Além disso, é preciso analisar esses fatores considerando cada uma das fases de vida do produto, desde o “nascimento” – a extração da matéria-prima – até a “morte” – o momento em que o produto perde sua função, quando é descartado ou dá início a outro ciclo de vida. (Isso acontece, por exemplo, quando a camiseta perde sua função e passa a ser usada como pano de chão, dando início ao ciclo de vida do pano de chão.)
Entre as etapas da vida de um produto, o pesquisador chama atenção para a do uso, que concentra a maior parte do impacto – no caso da moda, envolve a hora de lavar, secar e passar a roupa. E isso também varia muito, conforme os hábitos do consumidor e até mesmo a região onde mora.
Sob o ponto de vista do consumo de energia, a camiseta de algodão gera maior impacto que a de poliéster para quem tem o costume de passar roupas, pois amassa bem mais. Na Região Sul, em que se usa muito a secadora devido ao clima frio e úmido, esse impacto aumenta. Já para quem mora no Nordeste, tende a ser indiferente, pois tanto a de poliéster quanto a de algodão secam rapidamente.
Uma roupa branca de algodão tende a impactar mais que uma escura de poliéster, pensando no no consumo de água nas lavagens – a roupa clara “suja” mais – e na consequente poluição dos corpos d’água por sabão, detergente e amaciante. Já no caso de tecidos sintéticos, é preciso considerar as microfibras de plástico que se soltam a cada lavagem e vão parar em rios e oceanos, gerando uma contaminação crescente, ainda que invisível.
Como se vê, há muitas variáveis em jogo. Existe uma ferramenta para medir os diversos impactos – não somente os de ordem ambiental, mas também social e econômica. Trata-se da Avaliação de Ciclo de Vida (ACV), o instrumento do Pensamento de Ciclo de Vida destinado a fazer as contas na ponta no lápis, e que vem sendo adotado por algumas empresas para orientar a otimização de processos e redução de impactos.
Mas o consumidor, sozinho, vai fazer essas contas a cada decisão de compra, uso e descarte do produto? Certamente, não. Por isso, o melhor a fazer, segundo Dinato, é ampliar ao máximo a etapa de uso do produto. Estender a vida útil contribui para “diluir” ao longo do tempo os impactos gerados na produção e no descarte.
Além de preferir peças de grande durabilidade no lugar da fast fashion, outra dica é buscar aquelas que sujam menos, secam rápido, não precisam ser lavadas em água quente e dispensam o ferro de passar. Algumas dessas informações podem ser facilmente encontradas na etiqueta da roupa. Adotando esses cuidados que o Pensamento de Ciclo de Vida inspira, é possível poupar recursos hídricos e energia, reduzindo também a poluição das águas e a emissão de carbono (confira mais dicas para um consumo consciente).
Linha versus círculo
Outra vertente importante é o conceito de Economia Circular, que trabalha com a ideia de ciclo fechado, valendo-se do reúso, da reciclagem e da remanufatura. Em vez de “nascimento” e “morte”, a Economia Circular adota o “berço ao berço” (cradle to cradle), sem que haja descarte de resíduos no processo. No caso de uma roupa que não sirva mais, o tecido é desfibrado, dando origem a um novo fio que comporá uma nova peça (assista ao vídeo e leia entrevista com Michael Braungart, um dos criadores do conceito, sobre o papel do Brasil na Economia Circular).
Embora Pensamento de Ciclo de Vida e Economia Circular proponham abordagens diferentes para endereçar a questão da sustentabilidade, Dinato acredita que possam ser complementares, na medida em que a ACV contribui com uma metodologia para cálculos.
O senso comum indica que reciclar é benéfico, mas é preciso lembrar que todo processo – inclusive o de reciclagem – causa impactos, e é preciso medi-los para se ter certeza de que vale a mesmo pena. “Dependendo do gasto de energia que a circularidade requer, pode ser que seja menos impactante descartar o produto em um aterro”, exemplifica.
Para Luísa Santiago, que lidera no Brasil a rede de Economia Circular da Ellen MacArthur Foundation, o “lixo é um erro de design”. Por isso, o desenho do produto, incluindo a escolha dos materiais e suas propriedades de reciclagem e biodegradação, é fundamental para que a circularidade seja viável e faça sentido, dando origem a novos produtos ou retornando ao ciclo natural da biosfera de forma segura.
A indústria da moda entrou na mira da Ellen MacArthur – até porque a americana Nike e a sueca H&M passaram a integrar o time de parceiros globais da organização. Neste mês de novembro, a fundação deve lançar um amplo estudo sobre vestuário. O setor, segundo Santiago, é considerado um dos mais “lineares” que existem, graças à fast fashion, baseada em extração e descarte rápidos. Somente 1% do material empregado no setor de vestuário retorna ao ciclo de produção na forma de insumo.
O primeiro setor objeto de um estudo de peso da Ellen MacArthur, também por sua característica bastante linear, foi o de embalagens plásticas, que originou uma iniciativa sistêmica promovida pela fundação.
Por meio de iniciativas como esta, a ideia é implementar ações entre os CEO das maiores empresas do setor, influenciando a adoção de práticas inovadoras da Economia Circular, a exemplo dos processos de reciclagem que dão origem a produtos de alto valor.
Como modelos de ecodesign, ela cita a linha de camisetas com certificado cradle to cradle da C&A, desenhadas para serem reutilizadas e recicladas; as Lojas Renner, que tem reintegrado sobras têxteis em seus processos produtivos; e a Eurofios, que tece fios e barbantes com a reutilização de resíduos, sem precisar de novo tingimento, entre outros casos. “Já existe um movimento acontecendo na direção da Economia Circular”, afirma.
Segundo Dinato, da CiViA, quando um produto é previamente desenhado para a circularidade, é provável que haja benefícios. Mas, para se ter certeza e para mensurá-los, só mesmo calculando.