Por Magali Cabral
A calça jeans que provavelmente você tem pendurada no guarda-roupa pode ter percorrido até 75 mil quilômetros pelo mundo antes de ser sua. Isso sem considerar a viagem dos insumos que a compõe: o algodão que sai do campo e segue para fiação, lavagem e tingimento; os metais que das mineradoras vão para a indústria de botões, rebites e zíper; as etiquetas que, se forem feitas de poliéster, têm origem nos campos de petróleo e passam por muitos processos até estampar o nome de uma grife e, se forem de couro, acrescentem-se mais alguns milhares de quilômetros, além de ‘toneladas’ de outros impactos socioambientais.
Some-se a toda essa quilometragem muita quantidade. Se 20 anos atrás as marcas produziam apenas quatro coleções por ano, uma para cada estação, hoje a chamada fast fashion, que abastece as grandes lojas varejistas internacionais, produz 52, uma por semana, despejando no mercado global 80 bilhões de peças de vestuário por ano – isso sem contar o que rola no mercado informal, e no médio e pequeno varejo, onde o controle é ainda menor que sobre as grandes marcas.
No Brasil, apenas 20% do mercado nacional é dominado pelo grande varejo. A moda nacional é composta majoritariamente por PME e isso, de acordo com a designer de moda e fundadora e editora da plataforma Modefica, Marina Colerato, é um dos maiores desafios para a sustentabilidade. “Por um lado, é ótimo para a descentralização, por outro, é um inferno para a formalização.” Todos esses dados juntos dão uma ideia do tamanho e da complexidade da cadeia produtiva da moda.
Produzir grandes quantidades de roupas e calçados sem parar só faz sentido se na outra ponta as pessoas puderem comprar sem parar. Para isso, o preço tem de ser baixo, o custo de produção o menor possível e o ritmo de trabalho incessante. E está criada a fórmula do mal, responsável por situações degradantes de condições de trabalho, muitas vezes trabalho escravo, e de desrespeito ao meio ambiente.
Quem se sentiria confortável dentro de uma camiseta de marca que pudesse ter sido costurada por uma jovem costureira morta no desabamento do Rana Plaza, em Bangladesh (em péssimas condições de conservação, o prédio abrigava confecções de várias marcas globais famosas e ruiu em 24 de abril 2013, matando 1.134 trabalhadores, a maioria mulheres jovens e adolescentes, e deixando mais 2,5 mil feridos)?
E se você soubesse que o algodão utilizado naquela calça jeans pendurada no guarda-roupa veio de uma lavoura do Nordeste que intoxica trabalhadores rurais e polui rios e lençóis freáticos com agrotóxicos contrabandeados e usados além do limite permitido?
O que dizer das peças vendidas por confecções que exploram mão de obra de imigrantes ilegais, vivendo em situação análoga à escravidão em porões nos bairros do Bom Retiro, Brás, Pari ou Casa Verde, em São Paulo, ou no interior do estado? Presume-se que qualquer pessoa minimamente empática repudiaria produtos oriundos desse processo sujo da moda. Mas como saber o quanto de tragédia carrega uma peça de roupa que veste um manequim na vitrine glamorosa da loja do shopping center?
Eis aí um verdadeiro e inadiável desafio de sustentabilidade para a indústria da moda: dar transparência aos processos de produção, tanto no que diz respeito aos aspectos sociais como aos ambientais. O desabamento do prédio de Bangladesh serviu como marco de um movimento de reação global contra o estado de descalabros no setor. Começou com o protesto dos jornalistas que faziam a cobertura da tragédia, que se despiram das peças de roupa cujas marcas estavam relacionadas às confecções do Rana Plaza.
Nos dias seguintes, um grupo de líderes da indústria da moda sustentável fundou a Fashion Revolution. O movimento, hoje presente em 92 países, entre eles o Brasil, criou a Fashion Revolution Week. Durante a semana, são promovidas ações de conscientização dos consumidores para o fato de que a compra é o último passo de uma longa cadeia de valor que envolve milhares de pessoas que podem estar trabalhando em condições muito precárias de salubridade e de renda. O consumidor, quando tem a informação, pode fazer pressão, boicote e pedir transparência.
Quem fez minhas roupas? É a pergunta que o Fashion Revolution incentiva os consumidores a fazer. É o chamado consumo consciente, como explica a professora de design e sustentabilidade no Instituto Europeu de Design (IED) em São Paulo, Eloisa Artuso, responsável pela área educacional do movimento. Para ela, nas últimas décadas nos deixamos levar pelo fast fashion e passamos a consumir muito mais roupas do que realmente precisamos. Por isso, sugere: “Além de pensar duas vezes, vamos fazer com que as peças durem mais, vamos consertá-las. Vamos comprar de segunda mão. O que pode não servir mais para uma pessoa vira uma peça nova para outra. Vamos comprar do pequeno, promover o comércio local”.
Couro sujo
Não bastasse Bangladesh ter sido palco da tragédia do Rana Plaza, o país abriga também um dos dez locais mais poluídos do planeta, o distrito de Hazaribagh, onde operaram até abril deste ano 90% dos seus 270 curtumes. Esse elo da cadeia da moda internacional, que compra couro para a fabricação de calçados, bolsas, casacos e acessórios, explorava mais de 10 mil trabalhadores, entre os quais muitas crianças e adolescentes. Todos os dias, os curtumes despejavam 22 mil litros cúbicos de resíduos tóxicos cancerígenos, sem nenhum tratamento, em córregos, lagoas e canais da região.
Segundo levantamento feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS), 90% dos trabalhadores desses curtumes não vivem mais do que 50 anos. “Essa taxa de longevidade é pior do que a dos escravos do Sul dos Estados Unidos no século XIX”, disse o jornalista , fundador da Transparentem, organização americana sem fins lucrativos que investiga casos de abusos humanos e ambientais em cadeias de suprimento. Presente à Conferência Ethos 2017, em São Paulo, ele comemorou o resultado do trabalho da Transparentem em Bangladesh:
“Detectamos fornecedores de couro de 11 marcas conhecidas internacionalmente comprando insumos nos curtumes de Hazaribagh. Começamos a conversar com as empresas em outubro de 2016. Em 25 de março, a [agência de notícias] Associated Press fez uma reportagem sobre esse trabalho da Transparentem e, no dia 28 do mesmo mês, nos sentamos com os investidores de mais de US$ 2,3 trilhões da indústria e comércio calçadista para expor a situação. Em 8 de abril, o governo de Bangladesh cancelou todos os serviços de concessão de água, luz e energia desses curtumes ilegais, que foram obrigados a fechar as portas. É muito bom vencer de vez em quando”, disse Skinner. “Muitos varejistas sabiam de onde vinha o sapato, mas não o couro usado para fabricá-lo. Agora estão mais conscientes do problema.”
Um caso de cadeia
Esse mesmo tipo de rastreamento nas cadeias de suprimento nacionais é feito pela ONG Repórter Brasil, cuja missão desde 2003 é identificar e tornar públicas situações que ferem direitos trabalhistas e causam danos socioambientais no Brasil.
O jornalista e cientista social Leonardo Sakamoto, presidente da ONG Repórter Brasil, conselheiro no Fundo da ONU contra a escravidão e neto de costureira, não acha correto responsabilizar a extensão ou a complexidade da cadeia de valor da moda pelo desconhecimento do que acontece no setor. “Se organizações de tamanho médio como a Repórter Brasil e a Transparentem identificam os problemas, como grandes empresas multinacionais, cujos proprietários estão entre as pessoas mais ricas do mundo, não conseguem rastreá-los?”, questiona.
Segundo Sakamoto, essa situação de precariedade no trabalho e de desrespeito ao meio ambiente sempre esteve presente na indústria têxtil. Ela é histórica e remonta ao seu nascedouro, à Revolução Industrial. “Na Europa, quando os trabalhadores consolidaram seus direitos, a indústria têxtil migrou para países com farta mão de obra e baixa proteção trabalhista ambiental”, conta. “Primeiro foi o Brasil, depois a China e agora é Camboja, Vietnã, Bangladesh, entre outros.”
A partir do momento em que os países começam a efetivar direitos, os trabalhadores empoderam-se e a sociedade passa a exigir padrões mínimos, a empresa de capital internacional volta a migrar. “Se hoje a bola da vez é a Ásia, daqui a pouco será a Somália, e outros países da África.”
Atualmente, um grupo de trabalho ligado ao Conselho de Direitos Humanos nas Nações Unidas, está criando, segundo o jornalista, princípios vinculantes para substituir os princípios voluntários no emprego dos direitos humanos. A ideia, diz ele, é responsabilizar os países pelo mau comportamento de suas empresas. Assim, o próprio governo terá de obrigar os seus empresários a adotar determinados comportamentos.
A ONG Repórter Brasil lançou no ano passado o aplicativo Moda Livre, onde estão listadas mais de 100 marcas de vestuário com avaliação do que fazem para combater o trabalho escravo na cadeia de valor. Gratuito, o aplicativo já teve mais de 100 mil downloads. A ideia é ajudar o consumidor a fazer pressão na hora das compras.
Para Sakamoto, comprar é um ato político. “Quando uma pessoa compra, deposita o seu voto na forma como aquele produto foi feito. Se estou comprando de você, eu quero que você continue produzindo.” Por isso, é preciso garantir informação ao consumidor. “As pessoas precisam saber que uma costureira terceirizada ou ‘quarteirizada’ recebe entre R$ 2 e R$ 6 para costurar um vestido inteiro que será vendido em lojas famosas.”
Na opinião de Sakamoto, mais efetivo do que o consumo consciente são os movimentos de boicote de curto prazo, que provocam um efeito fogo de palha: “Dentro das empresas há departamentos de responsabilidade social e de compliance que vivem ‘apanhando’ do departamento de produção porque tentam mudar as coisas. Quando surge uma denúncia seguida de um boicote de um ou dois dias, é a oportunidade desse pessoal das empresas de empoderar-se e de agir.
Escravos de Jó
O Brasil ocupa o quarto lugar entre os produtores mundiais de roupas e abriga a cadeia produtiva completa das atividades relacionadas à indústria da moda. Segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), o faturamento do setor foi de R$ 37 bilhões em 2016. A parte mais agressiva desse contexto é a existência de trabalho escravo ao longo dos processos. Mas a diretora-executiva do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto), Mércia Silva, trouxe pelo menos uma boa notícia à Conferência Ethos: “No caso da cadeia da produção do algodão, os resultados positivos já começaram a prevalecer”.
Ela os atribui às várias ações implementadas nas últimas duas décadas, sobretudo à lista suja do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo elaborado em 2005 pelo Ethos, o Instituto Observatório Social (IOS) e a ONG Repórter Brasil. Hoje, segundo Mércia Silva, dificilmente as inspeções nos campos de algodão vão se deparar com trabalhadores em situação análoga à escravidão.
No entanto, o mesmo não é verdade na pecuária, setor com muitas empresas na lista suja do MTE e que, em grande parte, ainda trabalha na fase de capacitação de pessoal para rastrear a cadeia. Essa lacuna na pecuária impede que empresas pequenas e médias atinjam o grau de transparência da cadeia produtiva que almejam. É o caso, por exemplo, da franco-brasileira Vert Shoes, que fabrica tênis com borracha nativa produzida por seringueiros acreanos e algodão orgânico adquirido de cooperativas de pequenos produtores cearenses, tudo dentro das regras do fair trade, ou comércio justo (mais sobre a Vert nesta reportagem de Página22).
Um dos elos que impedem a Vert de atingir suas metas em sustentabilidade é a cadeia do couro. A empresa consegue rastrear o insumo somente a partir de sua entrada nos curtumes. Antes disso, os empresários garantem aos seus consumidores apenas que o couro que utilizam não provém de áreas desmatadas da Amazônia. Ficam sem transparência quesitos éticos como bem-estar animal e boas relações trabalhistas nas fazendas de gado.
No ano passado, vários setores representantes da cadeia da moda uniram-se para criar o Laboratório da Moda Sustentável, cuja proposta é trabalhar com a perspectiva de mudanças sistêmicas e de longo prazo em toda a cadeia. A parceria deu-se entre a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX) e a Abit, com apoio do Instituto C&A e administração do Instituto Reos.
As grandes varejistas também começam a apresentar as primeiras iniciativas de sustentabilidade, tanto para reduzir impactos ambientais como sociais. Recentemente a C&A lançou uma linha camiseta com Certificação Cradle to Cradle (c2c), nível gold.
O certificado internacional c2c é feito com base nos critérios de desenho de materiais seguros à saúde, desenho de produtos para reciclabilidade, uso de energias renováveis, gestão da qualidade da água e responsabilidade social.
Essas camisetas foram feitas com algodão “sustentável” (no site, a empresa informa que as pessoas envolvidas nos processos de produção do algodão não estão expostas a substâncias químicas perigosas) e preparadas para que possam ser recicladas no futuro, ou levadas para a compostagem. A C&A é também signatária do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.
A também internacional H&M já há alguns anos vem lançando uma coleção feita com material têxtil de baixo impacto. Segundo Eloisa Artuso, a loja de departamentos iniciou uma campanha de fomento da economia circular para a indústria da moda. Foi montado dentro das lojas um sistema de coleta de peças descartadas pelos clientes. “A empresa recicla os tecidos possíveis e os reinsere na própria produção”, explica ela.
A Zara, cuja cadeia produtiva esteve envolvida em trabalho análogo à escravidão em anos anteriores, seguiu a mesma estratégia, lançando no verão passado uma linha feita com material de baixo impacto.
“Os grandes varejistas já têm se movimentado nesse sentido, mas, pelo próprio tamanho e pelo tanto de impacto que causam, estão precisando se movimentar um pouco mais rápido”, arremata Artuso.