Por Magali Cabral
Por que é importante para o leitor de P22_ON conhecer os fundamentos de uma Agenda de Desenvolvimento Territorial (ADT)? “Primeiro – diz Carolina Derivi, pesquisadora do Programa de Desenvolvimento Local do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-Eaesp (GVces) –, porque o assunto tem muita intersecção com sustentabilidade”. Segundo, porque se trata de um instrumento que desloca o foco da análise de uma ação de desenvolvimento em um território (a chegada de uma grande obra, por exemplo) para os impactos positivos e negativos que se refletirão na vida das pessoas. Nesta entrevista, a pesquisadora fala dos desafios para se implementar uma Agenda de Desenvolvimento Territorial no Brasil e dá uma ideia do que seria um mundo ideal neste campo.
O que é uma Agenda de Desenvolvimento Territorial (ADT), em que contexto surgiu e com qual finalidade?
Uma agenda de desenvolvimento territorial é um instrumento de planejamento do desenvolvimento. O atributo ao adjetivo “territorial” pressupõe um recorte, que varia dependendo do contexto, e uma coadunação de diversos interesses, políticas, ou processos setoriais.
Tudo que é da vida humana acontece nos lugares. E tudo o que é do campo do desenvolvimento interessa aos territórios. Um território pode contar com uma boa produção, mas não ter infraestrutura ou segurança; pode ter emprego, mas não ter saneamento básico. A ADT é um instrumento que busca organizar essas diferentes necessidades conforme o recorte em que se insere.
No Brasil, o ápice das políticas de desenvolvimento territorial aconteceu ao longo dos dois governos Lula [2003-2010]. Algumas características começaram no governo FHC [1995-2002]. Havia a Política Nacional de Desenvolvimento Regional [implementada a partir de 2007] e o Programa Territórios da Cidadania [criado em 2008] com o objetivo de superar desigualdades dentro das regiões. O Territórios da Cidadania, provavelmente o programa mais ambicioso, tinha um recorte a partir do IDH [Índice de Desenvolvimento Humano], similaridades produtivas e características de urbanidade, mesmo nos territórios rurais, para superar a desigualdade entre o rural e o urbano.
Mas como tudo isso se dá na prática?
Para que funcione na realidade, uma agenda de desenvolvimento territorial precisa de uma série de instrumentos ao redor. Um deles é a governança, um dos principais desafios. É necessário compor um colegiado que pressupõe uma ampliação do espaço político. Quando a gente fala em desenvolvimento territorial, os recortes podem ser o de uma área de influência de uma grande obra, o de uma bacia, entre outros. Nesse recorte, para se criar acordos entre as diferentes necessidades e conseguir sinergias, às vezes há um tipo de investimento disponível que, combinado a outro, pode ampliar os benefícios esperados para aquele determinado território. E, para fazer isso, é essencial ouvir os diferentes atores locais.
Essas iniciativas podem ser voluntárias, como foi o caso do Projeto Juruti Sustentável – a Alcoa contratou o Programa Desenvolvimento Local do GVces para fazer um diagnóstico que pudesse subsidiar um plano de desenvolvimento sustentável para aquela região do Pará. As iniciativas podem surgir assim, de baixo para cima, ou podem vir de políticas públicas organizadas para este fim.
Então, a governança é um instrumento importante e necessário que tem de primar pela representatividade. Qual é o caminho para o desenvolvimento de um território? Quem melhor pode dizer isso se não as pessoas que vivem naquele território? Lideranças, tanto do meio empresarial como de movimentos sociais, em interlocução com os agentes públicos.
E os demais instrumentos?
O segundo instrumento, também essencial, são os recursos financeiros. Toda ADT precisa de dinheiro para ser implementada. Se não há previsibilidade de um orçamento vinculado àquela agenda, o espaço de governança vira uma governança sem dentes. Um exemplo foi o da Política Nacional do Desenvolvimento Regional [PNDR] que acabou minguado. Segundo avaliação feita em 2009 pelo TCU [Tribunal de Contas da União], um dos principais motivos [para o insucesso do PNDR] foi o fato de que o Fundo Nacional do Desenvolvimento Regional não havia saído do papel, pois estava vinculado a tributos que ainda seriam criados.
É um pouco o que acontece também com os comitês de bacia hoje em dia. São espaços de governança, com diversos setores da sociedade representados, que deveriam receber recursos da cobrança pelo uso de água para implementar um plano de bacia. Como a cobrança pelo uso da água é muito atravancada, a governança fica esvaziada. Isso está mudando, mas muito aos pouquinhos.
E um terceiro instrumento é o monitoramento. Por mais bem feito que seja o planejamento, os entraves não aparecem [nesta fase]. Entraves só acontecem na vida real. Você se planejou bem, organizou as prioridades, entrou em acordo com os atores sociais, mas a realidade é dinâmica e ao longo da implementação podem surgir novos desafios. Mesmo que a realidade não fosse dinâmica, o monitoramento tem a importância de verificar se aquilo que está sendo executado está tendo efetividade, está criando de fato o que se pretendia.
Como surgiu a ideia do desenvolvimento local/territorial? Qual a diferença entre local e territorial?
Tem uma série de discussões bastante acadêmicas e acaloradas sobre se há diferença entre uma coisa e outra. Para simplificar vou dizer que desenvolvimento local e desenvolvimento territorial são quase a mesma coisa. Os pressupostos para os dois são basicamente os mesmos que eu acabei de dizer. O desenvolvimento local surge na Europa nos anos 1970. Tem um caso emblemático, o da Terceira Itália, que é uma região italiana onde as pequenas indústrias começaram a ter um desempenho muito mais forte do que em áreas com grandes indústrias. Isso aconteceu porque os atores daquele território encontraram sinergias e formas de se auto organizar.
Isso acabou integrando um grande debate que há no mundo sobre mais Estado ou menos Estado. Alguns analistas se apropriaram desse fenômeno para dizer que aquilo era resultado da ação do mercado, ou da não intervenção do Estado. O desenvolvimento local para alguns era resultado de uma proposta ultra liberalizante e ultra localista. Outros disseram que o Estado tem de inspirar as suas políticas públicas a partir das potencialidades que se revelam nos territórios. Ou seja, o Estado tem de ser permeável, mas tem de participar.
A ideia do desenvolvimento territorial de certa forma apazigua essas diferentes visões porque não vai nem para o lado do ultra liberalizante, nem para o lado do ultra estatizante. Numa conformação mais contemporânea, o territorial acaba sendo um desenvolvimento que parte de uma certa autonomia do local, que participa da governança, que estabelece quais são as suas potencialidades, em um caminho autoral de desenvolvimento, mas estimulado e viabilizado por políticas públicas.
Tem um desafio de concertação entre desejos e aspirações de desenvolvimento que se forma no território e o que o Estado e suas políticas públicas indutoras de desenvolvimentos podem fazer por essas agendas. Não apenas que a política pública nacional ofertasse o que já tem decidido setorialmente, mas que a análise dos territórios, de suas vozes e suas demandas de desenvolvimento também pudessem pautar o nascedouro das políticas setoriais. O maior desafio ainda é como viabilizar uma permeabilidade equitativa de mão-dupla.
Por que esse assunto é importante para o leitor da P22_ON?
O assunto tem muita intersecção com sustentabilidade. Um plano de desenvolvimento territorial tem de encontrar concertações, conexões e combinações entre os diferentes setores. E o desenvolvimento sustentável é isso. Por exemplo, quando os empreendimentos são apresentados na Amazônia, o discurso que aparece é: chegou o desenvolvimento, pois vai ter investimento, royalties, geração de emprego… Isso é o desenvolvimento. Mas o desenvolvimento sustentável pressupõe outra coisa. Emprego é uma dimensão do desenvolvimento. Arrecadação de impostos é outra dimensão. É preciso equilibrar a necessidade setorial com uma série de outras necessidades, inclusive ambientais e sociais. Então, essa tentativa tão desafiadora do equilíbrio do tripé da sustentabilidade – economia, meio ambiente e sociedade – vai se reproduzir na perspectiva territorial do desenvolvimento.
Quanto mais avança a concepção de desenvolvimento territorial, há um deslocamento filosófico do desenvolvimento. Quando se aterram os esforços, o desenvolvimento deixa de ser determinado apenas pela economia e é deslocado para o centro da vida das pessoas. No final das contas, os indicadores de fim de tubo, que é o que vai dizer se um território está se desenvolvendo mesmo, é a efetividade. Ou seja, o que retorna realmente para a vida das pessoas
E como se dá o financiamento de uma ADT?
No programa DL [Desenvolvimento Local, do GVces], estamos fazendo uma discussão específica com propostas para a constituição de instrumentos de financiamento diferenciados para o contexto de grandes obras. Em geral, o que a gente pode dizer é que diferentes iniciativas de desenvolvimento territorial demandam diferentes tipos de financiamento. É como a própria governança. A boa governança dificilmente pode ser exportada. Por exemplo, tem uma experiência bacana de orçamento participativo em Porto Alegre. Daí pega-se tudo o que deu certo ali para replicar em Manaus. Não necessariamente vai dar certo porque as pessoas são outras, os códigos culturais são outros. Isso de certa forma também acontece com as fontes de recursos.
Durante um ano e meio aprofundamos estudos, realizamos debates com especialistas de diversas áreas propondo um modelo pensado para o contexto de grandes obras. Há uma sensibilidade muito grande antes que a obra comece. Entendemos que é um momento estratégico em que é possível preparar melhor os territórios para, eventualmente, até evitar alguns impactos socioambientais, sobretudo sociais. E há uma demanda muito grande depois que a obra é concluída. É um momento crítico porque aí os investimentos obrigatórios determinados pelo licenciamento ambiental tendem a secar.
Por isso que é importante ter instrumentos financeiros que tragam um olhar de longo prazo, mas que ajudariam o território a se adaptar, a se planejar e tirar o melhor possível daquele evento que é a grande obra.
Dependendo da situação, será necessário desenvolver um instrumento que funcione para aquela especificidade. O que é primordial, e o que todos têm em comum, é a garantia, a previsibilidade. Porque se não tiver uma vinculação com determinado montante e uma certa estratégia financeira, isto é, se não há confiança em como o planejamento se dará do ponto de vista do orçamento, o processo tende a se enfraquecer. E, claro, é essencial que se adotem boas práticas de transparência e governança.
A quem será endereçada essa proposta que o programa está desenvolvendo?
Isso está acontecendo dentro da iniciativa Grandes Obras na Amazônia: Aprendizados e Diretrizes. É um processo participativo que estamos conduzindo junto com a IFC, a International Finance Corporation, desde meados de 2015. Temos convidado instituições e atores locais a participar de um amplo diálogo em seis grandes temas que identificamos como fundamentais para conseguirmos intervir positivamente nessa trajetória de grandes obras na Amazônia. E a gente vem desenvolvendo grupos de trabalho, debates, seminários e fóruns em São Paulo, Brasília, em Belém e Altamira (PA). Nesse período de um ano e meio, participaram mais de 300 pessoas, cerca de 130 instituições de todos os setores, setor público, empresas, movimentos sociais, comunidade financeira, movimentos sociais, academia.
Desenvolvemos diretrizes em diferentes temas. Um deles trata de instrumentos financeiros para o contexto de grandes obras. Outro, de planejamento e ordenamento territorial. Um terceiro, atua no campo de direitos humanos – existem grupos especialmente vulnerabilizados, submetidos a mais riscos que toda a população que sente impactos. Assim, a gente desenvolve estratégias específicas para a proteção dos direitos das comunidades tradicionais indígenas e quilombolas; das crianças, adolescentes e mulheres; e, uma outra sobre capacidades institucionais, pois quanto maiores os desafios mais se depende da qualidade das instituições para se ter um resultado positivo. Estamos falando de territórios carentes da presença do Estado, carências históricas, com economias pouco diversificadas.
No caso de Belo Monte, a obra toda teve um orçamento de R$ 30 bilhões, sendo R$ 3,5 bilhões para contrapartidas do empreendedor para mitigar e compensar seus impactos, ou as famosas condicionantes das licenças ambientais. É um rio de dinheiro, mas se as instituições não estiverem fortalecidas para fazer bom uso do recurso o que se tem geralmente é desperdício de oportunidade e, muitas vezes, até mais impactos. Criam-se pioras.
Por exemplo?
Nós tivemos a oportunidade de pesquisar o cumprimento de condicionantes da usina de Belo Monte, também durante um ano e meio, num projeto chamado Indicadores de Belo Monte. Um exemplo de investimento malfadado foi o plano emergencial indígena, que se propunha a compensar atrasos e entraves das ações de proteção às populações indígenas que tinham sido planejadas muito antes. Em um ambiente de fragilíssima governança, criou-se uma lista de demandas. E aí, os povos indígenas, que têm outras culturas, outros códigos, algumas até de recente contato com a nossa sociedade, fizeram uma lista: gasolina, cesta básica, biscoito… Isso teve um impacto muito grande que ainda está sendo monitorado. Segundo análises do Ministério Público de Altamira e de outros observadores, impactou totalmente o modo de vida tradicional. Com a cesta básica, eles abandonaram as roças e o impacto foi o de mais crianças nascendo abaixo do peso, uma incidência maior de diarreia – isso tudo está documentado pelo Distrito Especial de Saúde Indígena. Na época, quem visitava algumas dessas terras relatava haver lixo pra todo lado. Foi um problema também de supervisão da Funai [Fundação Nacional do Índio]. Esse plano emergencial apareceu e teve um impacto de desestruturação do modo de vida tradicional e da saúde. Gastaram-se milhões para piorar a vida dos indígenas.
Quais os problemas mais comuns nos territórios que recebem grandes obras e como uma ADT pode ajudar a preveni-los?
Os problemas socioeconômicos, que não são poucos, estão tipicamente associados ao fator da migração em massa. A Amazônia é uma das regiões do Brasil com maior incidência de população na miséria. Apesar da melhora nos últimos anos, tem ainda uma renda per capita e um IDHM [Índice de Desenvolvimento Humano Municipal] muito abaixo da média nacional. Os 10 piores municípios de IDH do Brasil estão na região Norte. A Amazônia tem uma pauta econômica paradoxalmente pouco diversa. Além da Zona Franca de Manaus, os setores mais expressivos são mineração, agronegócio e indústria madeireira.
No caso de Altamira, o estudo de impacto ambiental calculou um fluxo migratório de cerca de 100 mil pessoas. A população, que era de 95 mil habitantes, dobraria. Então, as perturbações são de toda ordem. As pessoas precisam de emprego, de moradia, de atendimento a saúde, de saneamento básico, de infraestrutura de trânsito, de segurança. Muitos desses migrantes já vêm de outra fronteira fracassada. A exploração madeireira é sazonal. Acaba o emprego, a pessoa migra de novo. Aparece uma barragem, uma estrada, migra de novo. É um problema sistêmico de falta de oportunidades mais permanentes no território amazônico.
No contexto de grandes obras, por que tem de ter uma ADT? Porque o licenciamento ambiental sozinho não dá conta de endereçar tantos desafios [mais sobre licenciamento neste vídeo]. Primeiro, por causa da tempestividade do licenciamento, feito em três fases: a da Licença Prévia [LP], da Licença de Instalação [LI] e da Licença de Operação [LO]. Quando a LP é concedida, começa o processo de cumprimento de condicionantes e de investimentos para lidar com os impactos, geralmente organizados por um plano básico ambiental. A condicionante é um enunciado e o plano básico detalha programas e ações para atender a esses impactos. Só que quando isso tem início no rito do licenciamento, os impactos já se fizeram sentir.
Então, quando entra a ADT em todo esse processo?
A ADT deveria entrar em um momento muito anterior à LP. O ideal seria que o planejamento do desenvolvimento em diferentes territórios fosse um processo independente das grandes obras. Que as grandes obras já encontrassem um território com um processo de planejamento e governança. Mas isso é um mundo ideal. O que a gente está propondo e realçando em nossas discussões é que precisa haver um planejamento mais amplo do que lidar com os impactos, mas que abarque os impactos também.
O licenciamento tem um mandato. Não pode extrapolar e exigir do empreendedor algo que não foi causado por ele. Em teoria, é isso. O limite é o acréscimo de perturbação que a obra cria. Só que esses impactos da obra também pertencem ao campo do desenvolvimento. Tem condicionantes de saúde, precisa ter leito em hospital, precisa ter escola, saneamento. Essa questão não é a única, mas é um vetor importante levar em conta essa expectativa de migração. A gente já sabe que quando vai ter uma grande obra, os movimentos migratórios já começam muito antes. Se já se sabe que vai precisar, então com que tempo a gente consegue organizar estrutura [saúde, educação etc.] para dar conta desse fluxo migratório?
Mas uma ADT não pensa só nos impactos, a sua ambição será um desenvolvimento de longo prazo que idealmente olhará para o grande empreendimento, por um lado, como um dificultador, por outro, como um campo de oportunidades. São comunidades que nunca viram tanto investimento. As vezes, é uma única vez na história daquele lugar que haverá um aporte tão grande de recursos. Uma ADT vai, por um lado, aperfeiçoar a capacidade de preparo dos territórios e da própria empresa. Mas, ao mesmo tempo, vai olhar para o longo prazo que o licenciamento não olha. O grande período de investimentos com impactos vai da LP à LO. O boom de investimentos tem uma data para acabar e a ideia da agenda é oportunizar e pensar no longo prazo. Um exemplo clássico é o da construção de hospital. Constrói-se o hospital, só que em um ano de funcionamento um hospital custa o mesmo valor da construção. Se não há planejamento para a sustentabilidade financeira – o investimento não constitui um legado.
E como se dão os processos participativos no contexto da ADT?
O processo participativo é por si só um desafio dos mais agudos não só no contexto de grandes obras, mas para o desenvolvimento local em geral. O ideal é que a agenda não seja uma somatória de interesses de grupos locais. O ideal é que seja um pacto coletivo. Como desencadear um processo de negociação em que os conflitos sejam dirimidos previamente? E que as oportunidades de combinação sejam potencializadas?
É muito comum criticar governos por sua falta de integração. A mesma coisa a gente observa no plano da sociedade. Em qualquer sociedade há grupos mais empoderados e outros menos. Uns com mais capital político, institucional e financeiro. Uns com mais influência e mais capacitados para fazer valer a sua vontade. Representatividade é um aspecto muito importante, mas às vezes se acha que por haver uma organização da sociedade civil presente a sociedade está representada. Mas será que uma organização pode representar a sociedade civil? Será que ela não está presente por ser mais capitalizada? E como ficam os pequenos sindicatos dos produtores rurais que, neste contexto fictício, esteja mais fragilizado?
Um olhar para uma composição que seja realmente representativa de um território é um primeiro desafio. O segundo é esse aprender a construir coletivamente numa visão integrada. Existem técnicas, muita gente está pesquisando isso, mas é algo ainda com muita fronteira a ser explorada. Diante disso, constrói-se uma agenda que estabelece acordos e prioridades e que não seja uma lista enorme de desejos, mas que tenha uma dimensão operativa clara.
Há o risco de tudo isso terminar dentro de uma gaveta?
Sim, este é outro desafio enorme. Como fazer para que a ADT vire um instrumento vivo? A gente acompanhou muito de perto o Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu (PDRSX), um espaço de governança formulado para promover o desenvolvimento sustentável da região com recursos que vieram da licitação de Belo Monte, R$ 500 milhões.
Foi formulado um plano à época por um grupo de trabalho interministerial, em consulta com uma série de interlocutores de governos estaduais e locais. No dia a dia a gente observou o desafio das câmaras temáticas – de saúde, educação, povos indígenas tradicionais, de infraestrutura, entre outras. É um formato superinteressante, mas algumas dessas câmaras têm mais ligação com o planejamento, com o que estava combinado. Outras têm mais dificuldade e uma pauta mais pulverizada de projetos. Integrar as diferentes câmaras em prioridades comuns é também é uma dificuldade.
Mas é preciso lembrar sempre que participação social e transparência são ingredientes indispensáveis do ponto de vista dos resultados para o desenvolvimento local. É por meio deles que se constrói capacidades, de um lado, e legitimidade, de outro. Uma agenda que venha pronta, de fora, ou cuja implementação seja controlada a portas fechadas, pode até parecer mais eficiente, mas dificilmente terá o reconhecimento necessário à aderência dos atores sociais em torno dela. Não promoverá o processo de aprendizagem em governança, que por si só é também um legado do campo do desenvolvimento, e, ainda, se perderá o conhecimento fundamental de quem de fato vive nos lugares que se quer transformar.
Um componente importante também para o programa DL é justamente o monitoramento das efetividades do que se pratica, do estado de desenvolvimento do território. Periodicamente vai-se checando como estamos e para onde vamos. Fazendo isso, se conseguem duas coisas fundamentais. Uma, como já disse, é investigar se o plano está dando certo mesmo, e se os projetos colocados em prática, em função da agenda, estão de fato dando o retorno que se desejava. Mas tem um outro que é de socializar o conhecimento. Quando se tem um espaço de governança nutrido por produção de informação de qualidade, por indicadores formulados em conjunto, você consegue tomar decisões fundadas em informação estratégica e consegue colaborar para que a participação seja mais equilibrada em termos da capacidade de intervir no processo.
Um obstáculo da democracia participativa é alguém achar que tem coisas que são muito especializadas e que, por isso, não dá para todo mundo participar. Têm setores da política pública que são blindados da participação. O planejamento energético é um deles. O Copom [Comitê de Política Monetária] é outro. É um conselho com representantes de vários setores mas nenhum da sociedade civil. Mas nós achamos que é possível superar as desigualdades de capacidade de intervir nos processos. A participação, para ser bem sucedida, pressupõe que se busque combater as assimetrias. Assimetrias de conhecimento na prática são assimetrias de poder.
O que pode acontecer quando não se tem um planejamento de desenvolvimento territorial?
A oferta de 243 blocos de exploração de petróleo em Abrolhos, em 2002, foi um escândalo. As ONG ambientalistas ficaram consternadas porque Abrolhos já tinha sido considerado sítio do patrimônio mundial pela Unesco, reserva da biosfera da Mata Atlântica, era alvo de investimentos planejados do Prodetur – o Programa de Desenvolvimento do Turismo – da ordem de mais de R$ 2 bilhões. Havia uma política pública voltada para turismo naquela região com previsão de 80 mil empregos diretos e indiretos. O Ibama tinha considerado a área como de maior sensibilidade à perfuração na costa brasileira. Ou seja, havia um grande “não”, mas a Agência Nacional de Petróleo, desconectada desses processos, colocou esses blocos em oferta. Na época as ONG, lideradas pela Conservação Internacional, fizeram um relatório e conseguiram demonstrar que seria tão conflitante a exploração de petróleo na região que a oferta acabou sendo retirada pela ANP, numa decisão conjunta com o Ministério do Meio Ambiente. Não foi o fim dessa história, nos últimos anos outros blocos foram retomados e o conflito permanece, inclusive com judicialização dos processos.
A nossa tendência é falar em desenvolvimento local pensando nas sociedades locais, mas também para as empresas, não ter planejamento territorial, muitas vezes significa um nível de risco operacional e reputacional insuportável. Pode haver intervenção judicial que paralisa obras, invasão de canteiro de obras. Esses conflitos todos criam um ambiente de imprevisibilidade de risco grave para a inciativa privada. Veja como faz sentido olhar para o território antes de determinar o investimento setorial.