Por Magali Cabral
Projetos de grande escala ganharam fôlego com investimentos na última década, especialmente com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na Região Amazônica, e as consequências sociais e ambientais são mais severas para grupos especialmente vulnerabilizados (crianças, adolescentes, mulheres, povos indígenas e populações tradicionais) Mesmo quando há investimentos para ações de prevenção e mitigação de impactos para alguns desses grupos, nem sempre os recursos chegam na hora certa ou são bem aplicados.
Os principais gargalos aparecem geralmente relacionados à fase de planejamento e à fase de execução das ações, e os recursos, em vez de serem aproveitados para eliminar impactos, acabam sendo aplicados em redução de danos.
O Programa de Desenvolvimento Local do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas (GVces) vem documentando que, historicamente, a relação entre povos indígenas e populações tradicionais e os eixos de desenvolvimento designados à Amazônia é marcada por processos de expropriação territorial, restrição do acesso aos recursos naturais, violência e coerção, sobretudo pela total ausência desses grupos nos processos de planejamento e de tomada de decisão.
Apesar da existência de normas constitucionais e outras leis e diretrizes dedicadas à proteção desses grupos no contexto de grandes projetos, ainda se observa baixa aplicação prática e pouca efetividade dos mecanismos de diálogo.
O documento Povos Indígenas, Quilombolas e Populações Tradicionais, da iniciativa Grandes Obras na Amazônia – Aprendizados e Diretrizes, conduzida pela equipe do Programa de Desenvolvimento Local do GVces em parceria com a International Finance Corporation (IFC), integrante do grupo Banco Mundial, faz a seguinte advertência: “Sem um planejamento previamente discutido e pactuado, aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais restaria atuar apenas no âmbito da redução dos danos, mas não propriamente na prevenção à violação de direitos”.
Uma particularidade entre os grupos vulnerabilizados é que, enquanto sob o aspecto jurídico povos indígenas e os remanescentes de quilombo têm o reconhecimento constitucional de direitos territoriais especiais, as populações tradicionais estão ainda mais vulneráveis à implementação e operação de grandes obras. Os impactos socioambientais que uma grande obra na Amazônia pode trazer representam uma ameaça à reprodução cultural e à integridade e bem-estar físico das populações tradicionais, dada a intrincada interdependência entre as condições materiais de existência e os territórios tradicionalmente ocupados.
Para que a chegada de um grande empreendimento em uma região carente da presença do Estado possa vir a ser uma fonte de grandes oportunidades para o território, a empresa responsável deve atuar em sintonia com o poder público e a sociedade. Antes de tudo, precisa incluir em sua gestão de risco ações para além da conservação do meio ambiente.
CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Segundo a Constituição Federal, dar assistência a crianças e adolescentes é prioridade absoluta, não apenas do Estado, mas de toda a sociedade civil. Ou seja, empresas devem desenvolver políticas e iniciativas que priorizem este grupo social.
Em 2012, quando a Childhood Brasil (Oscip criada pela rainha Silvia da Suécia que trabalha para influenciar a agenda de proteção da infância e adolescência) propôs uma parceria com o GVces, o desafio que se impôs foi: como inserir nas práticas empresariais um tema tão complexo do ponto de vista da gestão de riscos associados à violação de direitos de crianças e adolescentes no âmbito da chegada e operação de grandes obras em territórios de delicada estrutura socioambiental?
Ao longo de 2013 e 2014, o centro de estudos produziu, juntamente com um grupo de atores, e em parceria com a Childhood e o Grupo de Empresas e Direitos Humanos da FGV Direito SP, o documento Geração de Valor Compartilhado a partir da Proteção Integral de Crianças e Adolescentes: Uma Proposta de Diretrizes Empresariais no Contexto de Grandes Empreendimentos.
A maior novidade nos dois anos de trabalho de ID Local [1] foi a proposta de adaptação do Balanced Scorecard (BSC) [2]– um dos mais clássicos instrumentos de gestão empresarial – inspirada pelo tema e pelas especificidades da relação entre empresas e proteção integral de crianças e adolescentes no contexto de grandes empreendimentos.
[1] ID Local é um projeto do GVces com o propósito de articular o setor empresarial para reflexão, troca de experiências e construção de propostas e diretrizes empresariais para o desenvolvimento local no contexto dos grandes empreendimentos, por meio do diálogo, do estudo e da cocriação das propostas, metodologias e ferramentas de gestão local.
[2] BSC (Balanced Scorecard) é uma ferramenta de planejamento estratégico e sistema de gestão que busca alinhar as atividades da organização com sua visão e estratégia, e prover um sistema de monitoramento do desempenho com relação a objetivos estabelecidos. Foi desenvolvido no início dos anos 1990 por Robert S. Kaplan e David P. Norton
Para conhecer o passo a passo do desenvolvimento do Balanced Scorecard aplicado à Proteção Integral de Crianças e Adolescentes e várias experiências-piloto das empresas participantes do processo clique aqui.
APRENDIZADOS
Ao longo deste ano, a equipe do GVces, em parceria com o IFC, ao olhar para o caso de crianças, adolescentes e mulheres, observou impactos severos que incluíam aumento da exploração sexual, trabalho infantil, desestruturação da convivência familiar, exclusão produtiva de adolescentes e mulheres, entre outros.
“Em parte, isso ocorre porque o processo de tomada de decisão desses empreendimentos não considera os direitos desses grupos populacionais em nenhuma das etapas, nem sua participação ao longo do processo”, afirmaram os pesquisadores no estudo sobre Crianças, Adolescentes e Mulheres, da Iniciativa Grandes Obras na Amazônia – Aprendizados e Diretrizes. “Também não é claro quais são as responsabilidades dos atores envolvidos – Estado, financiadores, empresas e sociedade civil – na proteção desses impactados”, concluíram.
INDÍGENAS, QUILOMBOLAS E POPULAÇÕES TRADICIONAIS
A Constituição Federal garante o usufruto dos indígenas em terras demarcadas e em territórios tradicionalmente ocupados. A regularização e a proteção desses territórios beneficiam não apenas os povos que ali habitam, mas todo o conjunto da sociedade brasileira, pois promovem o respeito às diferenças culturais, a preservação da biodiversidade e a manutenção dos serviços ambientais.
“Em particular, a manutenção e o uso sustentável da Floresta Amazônica em pé promovem a estabilidade e confiabilidade nos ciclos hidrobiológicos, armazena carbono e contribui a reduzir as ameaças das mudanças climáticas, além de preservar a biodiversidade.” É o que diz o estudo Mapa dos Caminhos – Proteção Territorial Indígena, trabalho realizado no âmbito do projeto Indicadores de Belo Monte da Fundação Getulio Vargas para subsidiar a Câmara Técnica de Monitoramento do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu (PDRSX) [3].
[3] Implementa políticas públicas e iniciativas da sociedade civil para a melhoria da qualidade de vida de mais de 400 mil pessoas que habitam os municípios de Altamira, Anapu, Brasil Novo, Gurupá, Medicilândia, Pacajá, Placas, Porto de Moz, Senador José Porfírio, Uruará e Vitória do Xingu
Os estudos de impacto ambiental de Belo Monte mostraram que, ao final de uma obra, enquanto parte do contingente populacional tende a se deslocar mais uma vez em busca de novas fronteiras, outra parte permanece na região e conflui para essas atividades ilegais. E as Terras Indígenas são ao mesmo tempo um oásis de recursos cobiçados e um obstáculo.
Entre as soluções possíveis, segundo as prospecções da equipe, está o ordenamento territorial, a partir da regularização fundiária, no entorno das terras indígenas.
“Ao abrir-se caminho para a produção rural e florestal amparadas pela legalidade, tem-se ainda o princípio de uma economia local mais pujante e resiliente, porque diversificada”, avalia o estudo. “São raras as ocasiões em que uma única ação tem o potencial de promover tantos impactos positivos, em tantas dimensões diferentes. O ordenamento territorial em volta de terras indígenas, a partir da concepção de faixas de proteção etnoambiental [4], reúne exatamente essas condições.”
[4] Faixa territorial na região das terras indígenas com a função de amortizar pressões e impactos através de ações de proteção, monitoramento, fiscalização ambiental e ordenamento territorial
Para chegar lá, um dos desafios é trazer a população indígena para o processo. É uma tarefa complexa, pois seu contexto é marcado por diferenças culturais importantes: vários níveis de compreensão da língua portuguesa, diferentes formas de organização social, diversas experiências de contato e de relações econômicas.
O investimento nesse ordenamento territorial, somado à participação indígena em todo o processo do licenciamento ambiental (concepção, implementação, operação, monitoramento etc.), será recompensador. As Terras Indígenas historicamente apresentam os melhores resultados de conservação e isso faz dos povos indígenas do Xingu parceiros indispensáveis em qualquer empreendimento de usina hidrelétrica. Acesse este link para saber mais.
COMUNIDADES TRADICIONAIS
Além dos povos indígenas, as comunidades tradicionais e os quilombolas também estão entre os principais afetados pela implementação e operação de grandes obras na Amazônia. Para o GVces e o IFC, a forma como os grandes empreendimentos têm sido implementados e operados na Amazônia nas últimas décadas – com base em relações de poder extremamente assimétricas – acaba implicando uma série de vulnerabilidades sobre as comunidades tradicionais que, ao contrário dos povos indígenas, não têm direitos territoriais assegurados pela Constituição.
Por outro lado, essas comunidades tradicionais (ribeirinhos, por exemplo) foram reconhecidas como culturalmente diferenciadas desde 2007 (Decreto nº 6.040). Elas não poderiam ser forçosamente deslocadas para ambientes estritamente urbanos porque seu modo de vida depende do acesso ao rio, entre outras especificidades. Ou seja, elas têm direito a acessar os recursos naturais necessários à sua reprodução física, cultural e econômica.
Mas Belo Monte não se planejou para nada disso. Tanto que às vésperas da conclusão da barragem o Ministério Público Federal, com apoio do Ibama, conseguiu paralisar as remoções por causa da situação dos ribeirinhos. As indenizações que estavam recebendo eram referentes apenas às benfeitorias, uma vez que poucos tinham titulação da terra. Até hoje a Norte Energia está sendo forçada a refazer cadastro e renegociar.
ATINGIDOS POR BARRAGENS
O documento Mapa dos Caminhos trata do processo de realocação de famílias (colonos, assentados, trabalhadores rurais e ribeirinhos) atingidas pela instalação da Usina de Belo Monte no meio rural. Até janeiro de 2015, só na área rural havia 1.798 imóveis rurais cadastrados, onde residiam aproximadamente 1.934 famílias.
Entre os gargalos identificados no estudo, o tipo de encaminhamento para a realocação dos atingidos – o da indenização, em detrimento de reassentamento – é um dos mais graves. Em Belo Monte, 75% das famílias atingidas no meio rural receberam indenização em espécie e apenas 3,4% foram efetivamente assentados (a meta do licenciamento era reassentar no mínimo 40% das famílias).
Os pesquisadores analisam que dessa decisão depreenderam-se muitas perdas. Desde a impossibilidade de monitoramento das condições de vida das famílias removidas, passando pela dificuldade para recomposição das atividades produtivas, até o desaparecimento de comunidades inteiras, incluídos o patrimônio cultural e o capital social de que dispunham seus membros.
O difícil acesso à informação quando das negociações foi outro elemento de fragilização das famílias. Houve relatos de falta de transparência em relação aos critérios que subsidiaram as decisões do empreendedor no que tange a indenizações, baixa possibilidade de negociação por parte das famílias, além de inexistência de suporte e de orientação jurídica.
A questão da indenização em dinheiro também resvalou na falta de referências sobre valores adequados. A Constituição Federal estabelece o “direito à prévia e justa indenização, em dinheiro” em decorrência de desapropriação por Declaração de Utilidade Pública.
Qual seria o valor justo? O de mercado? O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) mostrou na ocasião que a decisão não é tão simples: “Ao tomar como referência o preço de mercado, os processos expropriatórios infringem a norma constitucional da justa e prévia indenização, uma vez que o preço de mercado não necessariamente se coaduna com a noção de justiça social (…). As indenizações pelo preço de mercado não compensam os proprietários pelo fato de estarem sendo compulsoriamente constrangidos a alienar sua propriedade, tratando-os como se fossem livres vendedores”.
A literatura consultada pelos pesquisadores também é taxativa quanto aos tipos preferíveis de reparação em favor dos reassentamentos em lugar de indenização. Por exemplo, a Comissão Mundial de Barragens (WCD, na sigla em inglês) identifica que o pagamento em dinheiro, embora seja a opção mais praticada, “frequentemente falha em recompor os meios de vida perdidos”.
Também para o CNDH, ainda que, em vários casos, os reassentamentos demonstrem desempenho insuficiente, o que se verifica é que a aplicação de políticas estritamente indenizatórias tende a levar a processos de empobrecimento e marginalização ainda mais acentuados.
“O reassentamento, e em particular o reassentamento coletivo, parece ter-se comprovado, ao longo do tempo, como o caminho mais propício a uma adequada reposição e melhoria das condições de vida de populações rurais”, aponta o CNDH.
Antes de decidir por indenização ou reassentamento, a Comissão Mundial de Barragens recomenda cinco valores centrais de boas práticas para as hidroelétricas em todas as suas ações de negociação com as famílias atingidas por barragens: “tomada de decisão participativa”, “eficiência”, “equidade”, “sustentabilidade” e “responsabilização pelo cumprimento de regras acordadas” (accountability).
Segundo a equipe de DL do GVces, o primeiro princípio, o da tomada de decisão participativa, é tão importante que entrou para essa lista de cinco valores da Comissão Mundial de Barragens e assim se define: “promoção de participação aberta e significativa em todos os estágios de planejamento e implementação, que leve a resultados negociados”.
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