A seguir, publicamos dois artigos de opinião. O primeiro – assinado por Mario Monzoni e demais autores – explora os desafios de formar gestores para a sustentabilidade. No segundo, Eduardo Rombauer resgata a base de qualquer processo formativo, que é a necessidade de reaprender a dialogar.
[Artigo 1]
Formação de gestores para a sustentabilidade
Por Mario Monzoni * e demais autores **
Atualmente, ao aproximar-se de uma realidade plural, contraditória e paradoxal, de mudanças velozes, em que a incerteza foi universalizada, somos impelidos a revisitar o percurso trilhado, a vislumbrar o devir e a inovar.
O principal papel da universidade é participar da grande obra que consiste em ler o livro da vida. Desde sua criação a universidade no Ocidente vem sendo marcada por exigências diferentes, contraditórias e até opostas que a levou a se organizar em áreas de conhecimento, a distinguir as disciplinas e a instaurar dentro delas especialidades. Esse processo revelou uma fragmentação que dificulta a reflexão das disciplinas sobre si mesmas e entre elas. Essa realidade tem se mostrado insuficiente para tratar tal complexidade de sistemas pela ótica da sustentabilidade e, de modo semelhante, instiga a formulação de modelos mais apropriados para encaminhar soluções e inovar.
No âmbito da sustentabilidade é demandada simultaneamente uma mudança de ideias e de estruturas que impulsionem ações que possam atender a legitimidade de um movimento de transformação que não esteja sujeito a interesses políticos ou econômicos que, mesmo apresentados com novas vestimentas e discurso, perpetuam práticas e concepções que se têm mostrado inadequadas para atender a realidade da atualidade.
Após as múltiplas e louváveis pesquisas e reflexões sobre a necessidade de “transatravessar” as fronteiras e o enclausuramento das disciplinas como registrado na bibliografia nacional e internacional, no âmbito da academia é demandado compreender a natureza disciplinar, pluri, multi, inter e transdisciplinar no processo de concepção, gestação e aplicação de conhecimento. O momento exige que as trajetórias inter e transdisciplinar (ITD) estejam cada vez mais presentes na cotidianidade da vida dinâmica das escolas de negócio e das empresas.
No âmbito das empresas cresce a necessidade da fertilização cruzada empresa-academia e a adequação contextualizada, visando aprimorar continuamente o agir humano, para que o sucesso dos negócios seja conjugado cada vez mais à dignidade humana e ao bem da coletividade.
Momento de mudança qualitativa
A emergência de novos modelos e a mudança intencionada são multifacetadas e estão intrinsecamente ligadas a uma governança que necessariamente levará em conta o crescente reconhecimento da complexidade do desenvolvimento humano, sua relação com o conhecimento e, também, sua interação com seu habitat. Isso implica abrir espaço-tempo para tratar temas como descompartimentalização dos saberes, valorização humana, espaço para a transformação, bem-estar e qualidade de vida, valorização do diálogo e reconhecimento da ação humana no ambiente.
Grandes desafios se colocam no processo de descompartimentalização dos saberes, dentre eles: (a) a religação de saberes no contexto da ciência e do conhecimento geral; (b) a verificação das relações existentes entre modalidades de conhecimento inter e transdisciplinar e suas possibilidades de respostas a problemas que não podem ser adequadamente tratados por abordagens monodisciplinares; (c) a exploração e a pesquisa conceitual, empírica e metodológica que acessem conhecimentos que não podem ser abordados pelas disciplinas acadêmicas nem pela interdisciplinaridade; (d) a religação dos saberes acadêmicos e não acadêmicos; (e) e também a religação entre subjetividade e objetividade.
A questão da valorização humana envolve processos de emergência do sujeito, práticas de reciprocidade, cidadania intelectual e a compreensão do corpo como um fenômeno carregado de cognição, enquanto potência vivente e motriz. Segundo Merleau-Ponty, o corpo reflexiona e a reflexão não é um privilégio nem exclusividade da consciência. A emergência do sujeito é um processo, parte de um movimento cultural visionário que diz respeito à perenidade da dinâmica de transformação do humano e à ampliação de consciência da dimensão que nos faz seres humanos.
O espaço para a transformação requer minimamente a abertura a mudanças e capacidade para inovar. Isso exige a compreensão de uma nova atitude de progresso que vá além da visão econômica, científica e tecnológica e abarque questões no âmbito pessoal, cultural, social e ambiental. Nessa perspectiva, o professor mais do que transmissor de conhecimento se engaja em um processo coformativo em que suas funções de pesquisador e mediador do conhecimento são significativamente enobrecidas, ampliadas e valorizadas. Sua atitude é a de um aprendiz permanente e de um inspirador de sentido.
Saúde e cultura e ressignificação do espaço-tempo são temas nucleares no âmbito do bem-estar e qualidade de vida. Fidelização de parcerias, fertilização cruzada academia-academia; academia-empresa e academia-alunos e ex-alunos são vias de diálogo a serem fortemente cultivadas. Finalmente, e nem por isso de menos importância, coloca-se o reconhecimento da ação humana no ambiente como de vital relevância na convivência estético-ética na condução das operações institucionais a curto, médio e longo prazos.
O chamado das Nações Unidas
Desde 2009, a FGV-Eaesp, de forma a atender a iniciativa da ONU Principles for Responsible Management Education (PRME), concebeu, gestou, formulou e implementou ação formativa para a sustentabilidade, a saber: a eletiva Formação Integrada para a Sustentabilidade (FIS). O primeiro ponto levado em consideração na criação desse projeto foi a abordagem da relação sujeito-objeto, ou seja, a relação do sujeito consigo mesmo, com o outro e com o mundo que o circunda, pois parece aqui estar presente a questão nuclear de qualquer desafio que envolve sustentabilidade.
O FIS emerge e se materializa dentro de uma dinâmica complexa, por excelência não linear, em que conteúdo, valores, crenças e vivências são conjugados a partir de e de forma a articular dois projetos: 1. Projeto Referência, que trata de um problema real de uma empresa real, onde um desafio proposto deve ser investigado e respondido; 2. Projeto de Si Mesmo, que instiga uma autorreflexão, o mergulho sobre o conhecimento “do si” (identidade enquanto ser humano) e “de si” (identidade pessoal) e do percurso que norteia o entendimento do “eu” com o mundo.
Inovação
Sem inovação será impossível tratar as questões de sustentabilidade. Existem algumas condições favoráveis e desfavoráveis para inovar: físicas, psicológicas, afetivas, sociais, econômicas e certamente cognitivas que concernem às nossas percepções, nossas memórias, nossas linguagens. A inovação deve estar integrada ao processo de maturação e de domínio progressivo de nossa tripla relação com o mundo: integrada à nossa relação com o contexto (aos objetos, aos acontecimentos, ao espaço-tempo), integrada à nossa relação com os outros, e integrada à nossa relação com nós mesmos.
Para a filósofa Hannah Arendt, “o homem, se bem que ele deve morrer, não nasceu para morrer, nasceu para inovar”. Os cientistas Humberto Maturana e Francisco Varela, que cunharam a expressão “autopoieses”, trouxeram a confirmação de que uma forma criativa independente existe em todo organismo vivo e constitui a base de uma autonomia mínima. Segundo o pintor Georges Brunon, “o gesto criador está latente em nós”. Para o lógico Stéphane Lupasco e o físico Basarab Nicolescu, a capacidade de inovar indica que existe uma fase potencial, do “ainda não criado”, do “ainda não atualizado”, de nosso potencial de inovação ‒ que concerne a todos nós, a universidade incluída.
No âmbito da cognição, o processo de inovação se inscreve pela articulação do sensível ‒nossos sentimentos e imaginação; do experiencial – nossa historicidade e vivências, tanto as passadas como as presentes ou as futuras; e do pensamento formal – ideias, conteúdos, conceitos e lógicas. Referenciais cognitivos e instrumentos de investigação se mostram de grande valor nesse processo de criação, bem como a fundamentação transdisciplinar, a arte e as teorias de sistemas, a Teoria U e a da resiliência.
Vivência e experiência
É uma tarefa da maior importância e que sempre permanecerá incompleta ilustrar no que consiste uma formação integrada para a sustentabilidade destinada a alunos de uma escola de negócios e a pessoas que atuam em empresas. Articular teoria e prática para tratar dessa questão é essencial quando se propõe pensar o cenário contemporâneo em um mundo político e econômico tão marcado por uma crise de valores, uma crise de modelos e recursos metodológicos e pela ausência generalizada, no ambiente institucional, de um olhar sobre o conhecimento de si mesmo.
“Não temos dúvidas de que o progresso técnico – a racionalidade instrumental – possui um poder de difusão muito maior do que a criação de valores substantivos. […] O gênio inventivo do homem foi canalizado para a criação técnica. […] No entanto, o desenvolvimento deve ser entendido como um processo de transformação da sociedade não só em relação aos meios, mas também aos fins […].” Celso Furtado (2000). Introdução ao Desenvolvimento: Enfoque histórico-estrutural. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
* Coordenador do FGVces
** Este texto foi uma criação conjunta da equipe de formação para a sustentabilidade do FGVces, para fazer parte de um artigo apresentado pela FGV em evento internacional. Participaram dessa equipe, além de Mario Monzoni, Érica Gallucci, Maria de Mello e Ideli Domingues.
[Artigo 2]
Reaprender a dialogar: uma base para a participação democrática
por Eduardo Rombauer*
É comum que, em momentos de crise política, cidadãos sintam-se mobilizados a participar novamente dos rumos da sociedade e da política.
Porém, nessas crises, somos facilmente levados de roldão pelos discursos fáceis, aqueles carregados de estigmas, preconceitos e soluções milagrosas. Ou, ainda, diante das metáforas de guerra e polarizações estéreis, muitos optam por se recolher ao silêncio, ou no máximo ao lugar do ativista de sofá para interagir na zona de conforto dos guetos criados pelo algoritmo do Facebook.
Esses caminhos, em vez de resolver nossa angústia, reforçam o problema: a sociedade se torna cada vez mais fragmentada, com baixa adesão aos valores democráticos e incapaz de convergir esforços para projetos de futuro.
A dificuldade é que, quando tentamos dar um passo em direção ao espaço público, nós nos deparamos com limitações muito básicas na formação de nosso tecido social. Não conseguimos preparar-se para compreender os sistemas e as dinâmicas de governo, estamos mal informados, em parte em razão de estar expostos a meios de comunicação tendenciosos, e desconhecemos os caminhos para nos tornar cidadãos mais plenos.
O que precisamos, então, aprender para participar mais efetivamente dos espaços que temos para influenciar nosso destino?
Antes de tudo precisamos reconhecer que a Democracia é um fenômeno cultural, e não instrumental. Ou seja: mais do que um sistema de governo, a Democracia tem sua raiz em nossas relações cotidianas.
A vida social é diversa e cheia de contradições e paradoxos, e para compreendê-la é preciso sair dos guetos e construir espaços efetivos de convergência. Precisamos aprender a ver o diferente, olho no olho, inclusive aqueles com quem não nos identificamos a priori.
E, na base desta cultura, está uma competência muito elementar: a de dialogar. É muito comum que as pessoas se enganem ao acreditar que estão dialogando com outra pessoa.
Dialogar não é uma formalidade, nem escutar parcialmente o outro enquanto se prepara para dizer outra coisa. Tampouco é uma performance para simular uma postura de liderança. Estamos aqui nos referindo ao diálogo com base na atitude genuína de interesse pelo outro, com uma escuta ativa, na qual exercemos a suspensão (mesmo que temporária) de nossas próprias certezas e julgamentos.
Um verdadeiro diálogo requer um exercício contínuo de autoconhecimento: é preciso perceber a conversa que acontece dentro de cada um de nós e determina nosso entendimento de tudo que ocorre “do lado de fora”. É como ilustra esta imagem:
Como lidar com nossos próprios julgamentos, crenças, preconceitos e opiniões para expandir nossa habilidade de escutar o outro, principalmente quando a mensagem que dele recebemos nos provoca alguma inquietação? A resposta para esta aprendizagem não vem pronta: “é preciso que vivenciemos outras maneiras de dialogar, pois essa capacidade requer prática”.
A boa notícia é que cada vez mais se consolidam – no Brasil e no Mundo – oportunidades para que esse conhecimento possa florescer e prosperar. Desde as abordagens pioneiras como Pedagogia do Oprimido, psicodrama, Teatro do Oprimido e a pedagogia social até as mais recentes, como o Café Mundial (World Café), Open Space, comunicação não violenta, Teoria U, terapia comunitária e os jogos cooperativos, sabe-se que tais abordagens formam um campo de práticas dialógicas em franca expansão (leia mais em “Processos“). São iniciativas que respondem à necessidade cada vez mais premente das organizações de promover diálogos de qualidade em qualquer tipo de decisão.
Entre os que oferecem esse tipo de conhecimento para um público mais amplo, o Art of Hosting tem tido um papel interessante. Trata-se de uma rede internacional de facilitadores e anfitriões de conversas que oferece jornadas vivenciais de aprendizagem, nas quais várias dessas ferramentas e abordagens de diálogo são ensinadas na prática. Há também vasto material on-line gratuito e cursos profissionalizantes para quem deseja se aprofundar nesse campo de conhecimento.
Uma vez que a pessoa redescobre a arte de dialogar, um novo campo de possibilidades se revela para que ela possa atuar em qualquer circunstância de sua vida. Consegue mudar ambientes familiares e de trabalho, aprende a fazer pontes para resolução de conflitos, descobre como ajudar para que as equipes sejam mais resolutivas em suas ações, encontrem maneiras de gerar mais cooperação entre movimentos e organizações. As reuniões das quais participa tornam-se mais céleres, e nelas a inteligência coletiva pode emergir para que escolhas mais sábias sejam feitas. Não é à toa que as pessoas que sabem escutar são cada vez mais valorizadas no mercado de trabalho.
O grande desafio está em como tornar essa capacidade de dialogar mais amplamente difundida em nós, entre nós e em nossas instituições sociais e políticas. É preciso reconhecer no verdadeiro diálogo não apenas uma alternativa para algumas situações, mas como um modo de ser-com-o-outro no mundo, como uma qualidade da cultura democrática que estamos formando. A arte de dialogar precisa ser vista não apenas como um serviço a ser oferecido por especialistas, mas como parte de nossas competências básicas de cidadania, de profissionalismo e de liderança.
À medida que fortalecermos os ambientes dialógicos, o tecido social poderá se tornar mais permeado de valores democráticos, e ofereceremos oportunidades para uma participação cidadã mais plena e efetiva. Tal transformação está a nosso alcance e compõe o mosaico de soluções que a sociedade já consolidou para responder aos desafios deste século.
Que tal dialogarmos sobre os caminhos pelos quais podemos viabilizar esta transformação?
* Membro do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) e mestre em Prática Social Reflexiva pela London Metropolitan University